quinta-feira, 30 de setembro de 2010

eu sou.

Eu imagino viver cada canto do meu espanto para me deslumbrar no entanto com a imagem que tenho de meu espelho um tanto quanto sereno. Eu me imagino sendo.

ENCONTRO MARCADO

Depois da destruição, da queda, da chuva de pedras, do vendaval, das fracturas, da morte prematura. Ela abraçou a loucura e, sem dúvida alguma, juntou seus pertences e seguiu em frente. Passo largo, dor no braço, cansaço e também alguns calos na mão que segurava o cajado, com ele, podia prever os obstáculos, espantar serpentes, abrir caminhos,traçar o percurso do novo rumo...E entre ser uma velha menina ou uma jovem sabida, fez ela a escolha merecida. Sentada de pernas cruzadas com suas anotações feitas em um caderno secreto recebeu a visita de um homem honesto que a ajudou a entender o enredo nas entrelinhas dos seus textos. Ele iluminou seu semblante e ela criou naquele instante a mais bela história de amor, nunca vista antes.

PROCURADA

Foto: Viviane Fracari | Atriz: Camila Bevilacqua

Perfume, baton, cinturinha, pele macia, calcinha pequenina, sutiã de rendinha, linda, cabelo dourado, chinelinho, brinco e colar, unha francesinha e brilhante no anelar, vestido turquesa, olhos verdes, sorriso sincero, gargalhada de menina levada, simpática, engraçada, falante voz aveludada, quando mimada, solta um alto grito impositivo para ver realizada sua vontade imperial, pois no seu mundo real, o poder é dela, da linda e coroada mulher de asas, mulher alada.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

quarto de hotel ou primavera 2010

Rápido, contínuo movimento do corpo dentro do espaço dilatado do fundo da terra. Clamam todos pelo rebento. Sopra o vento, o vácuo encontra a explosão, vem o barulho do trovão. Vem também ela cheia de gratidão pela oportuna chance de viver e aprender a humilde tarefa de ser de novo um nada. Nada, vazio, começo, uma criança num berço a brincar com um móbile, a vida se move e nossos olhos correm para alcança-la. Diante do olhar pisca-pisca a vista, pálpebra, vigília (...)

Tantas estrelas sobre minha cabeça, tanta chuva de cachoeira, meus pés na pedra, correnteza. Que canto  suave, o canto da sereia. Nudez aguardando o chamado, o recado do pássaro preto avisando que a flor desabrochou, que a primavera chegou. Enxugo o corpo, penteio os cabelos, me deito. Sou terra fértil explodindo em cor. A festa da minha chegada. O amor. (...)

Derramava sobre as casas a garoa fina da noite nublada. No silêncio que morava atrás do descanso das janelas fechadas surge o perigo de ver eternamente mergulhado num lago, o tesouro afundado. Ladraram
os cães anunciando que uma mulher de escafandro adentrou a água escura e trouxe à superfície turva um baú. Um baú lacrado. Preferiu não abrir, deixou-o muito bem guardado por exatos dez dias. Precisava primeiramente despedir-se de um remorso antes de tomar posse do conteúdo raro que ficou por tanto tempo afastado do conhecimento sensivelmente humano. Depois de purificadas as mágoas, sentiu-se pronta para apropriar-se dos enigmas do mundo submerso. (...)

sábado, 18 de setembro de 2010

carro de passeio

Então ele abriu a porta do carro para ela entrar, pois bem...
Ela recusou, disse que preferia ir à pé.
Então ele estacionou, desceu do carro e disse:
"Pois que seja, de qualquer maneira irei acompanhá-la".
A caminhada foi descomprometida, seguiram à pé pela avenida.
O carro ficou parado aguardando o retorno dos enamorados.
Voltaram tarde, cansados. Ela mais sóbria, ele mais embriagado.
Sendo assim resolveu aceitar a carona, desde que fosse ele o passageiro e ela a condutora.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Hoje Não

Foto de Viviane Fracari


Hoje eu não consigo. O mundo é grande, eu pequenina, minha estrada é bem comprida, fiquei com preguiça de começar, estou muito triste pra poder criar, inventar, fazer surgir da cartola um coelho, ou soltar uma pomba entre lenços. Estou pronta pra renascer, mas antes eu preciso morrer. E morrer dói. Hoje eu não consigo, não vou fazer meu número de mágicas, vou recolher a bancada e voltar pra casa. Amanhã quem sabe...

terça-feira, 14 de setembro de 2010

PREVISÃO

Um dia antes de conquistar o território novo, tive que eliminar algumas pendências, mas fiz tudo com prazer.
Fiz um acordo com um antigo incomodo e combinei uma lavagem na escadaria das minhas lamentações.
Para isso preparei um figurino, ou melhor dois: um de guerreira e outro de esvoaçante rapariga faceira.
Fiquei pronta pra adentrar o mundo desconhecido onde fui elevada com louvor à uma posição privilegiada.
Então cercada de gente admirada com minha regenerada aparição. Vivi um dia de grande alegria e comoção.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

com a rosa vermelha nos cabelos

Depois de ter tirado o essencial de dentro da casa.
O tempo veio lhe cobrar outra tarefa.
Retirar sem pressa, mas com detalhes, tudo o que ainda restara de identidade.
Remover as marcas, as manchas. Tirar a poeira e dar água as plantas.
Ela então vestiu seu avental e calçou os chinelos. Como não gostava de parecer desleixada,
roubou uma rosa vermelha do canteiro e colocou-a nos cabelos.
Ficou linda, mais parecia a borralheira, que nem envolta em trapos ficava feia.
Fez toda a limpeza, jogou a tralha no lixo, se livrou de todos os residuos.
Depois pra enfeitar o lar vazio de memórias, retirou a rosa dos cabelos, encheu um jarro com água e mergulhou nele a vermelha flor.
Ao fechar a porta despediu-se da rosa que seria agora a habitante da casa nova.
A rosa vermelha perfumada.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

LANTERNA

Está escuro lá fora. Está escuro aí dentro. Acende a lanterna na sua testa, entra nessa caverna.Tem fogo no centro da terra, tem  um vulcão prestes a entrar em erupção. Faz sua fogueira ancestral, sua faísca de neandertal. Ilumina a trilha, encontra sua saída. Vence o breu que escureceu sua vista, vê se enxerga com os olhos arregalados, o sábio andarilho cansado que vive a guiar seus passos. Ele anuncia o fim dessa busca exaustiva. A cobra cega retira a venda dos olhos com coragem e agora você vislumbra o centro e a periférica paisagem.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

as pazes

DOIS CULPADOS
UM CURADO
OUTRO CURVADO
DOIS COM RAZÃO
UM TURRÃO
OUTRO DESILUSÃO
DOIS FERIDOS
UM CAÍDO
OUTRO GEMIDO
DOIS AJOELHADOS
UM CALADO
OUTRO AMORDAÇADO
DOIS AMIGOS
UM EM PERIGO
OUTRO SEM ABRIGO
DOIS RESGATADOS
UM MACHUCADO
OUTRO ESPARADRAPO
DOIS DE MÃOS DADAS
UM CONTANDO PIADA
OUTRO DANDO RISADA 

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O Presente

A caixa era quadrada e tinha uma fita branca enrolada.
Dentro tinha o amor envolto em papel de seda.
Ele desembrulhou, colocou junto ao corpo e depois experimentou.
Caiu-lhe bem o amor, como uma luva ele comentou.
O anjo que lhe presenteou sorriu com satisfação,
pois tinha escolhido o amor sob medida para aquela ocasião.
Ficaram todos muito alegres, o anjo temia ter errado na escolha da cor.
Ficou com o azul, ao invés do vermelho, pensou combinar o amor desse jeito.
Ele arrancou a etiqueta, em prova de sua certeza.
Sabia o anjo que amores são trocados quando o tamanho é largo ou apertado.
Que alívio sentiu o anjo quando viu seu presente aceito com tanto apreço.
Voltou batendo asas pra nuvem clara onde morava.
E na casa dele, daquele que recebeu o presente, pudiasse ver reluzente, o azul amor incandescente.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

em pleno juízo

Coisas inteiras, completas.


Um quebra-cabeça à espera da última peça. Encaixou...


A visão justa da totalidade.


Obra concluída, refeição à mesa, embalagem fechada, escultura de barro intacta.


Coisas inteiras, unidades perfeitas.


Um cubo mágico prestes a formar seus lados. Terminou...


Contemplar a inocente lua-cheia.


A quarta estrofe do soneto, o todo, o corpo, o esquerdo junto ao direito.


Em equilíbrio eu danço ao som das trombetas.


Preenchida de vazio, renasço pra viver em liberdade cada perfil de minha única face.

sábado, 4 de setembro de 2010

o sol do meio-dia

hora do almoço, do café da manhã em domingo preguiçoso.
hora do calor penetrar a pele, de me despir de algumas vestes.
hora de brincar na sombra, de namorar no mar.
hora de se molhar, de beber agua, de beijar.
no sol do meio-dia tomei sorvete de melancia.
no sol do meio-dia toquei em você e sua pele ardia.
no sol do meio-dia o ar estava seco, a garganta doía.
no sol do meio-dia fiz um pedido pro um Deus do Egito.
Pedi um abraço pra aquecer o frio que, mesmo ao sol, sinto.

QUANDO

Te enviei uma cartinha por e-mail.
Quando? Uma cartinha molhada de lágrimas,
estava tristinha nesse quando que já não é.
Hoje quando agora, estou mais ensolarada,
ainda um quando disfarçando a cara amarrada
com um pouco em quando de sorrisos amarelos.
Quando em vez alaranjados.
Quando já bem avermelhados,
ao escrever nesse quando pra você.
Quando você vem me ver?

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

contrassenso

Seria melhor escrever sem piedade.
Quantas palavras brandas procuro e acho
nas frases cordiais dos encontros banais.
Melhor ser extrema, forte, certeira.
Dizer errado a vontade verdadeira.
A forma torta do grito seco da fome hostil.
Que cega maltrata as regras e dilacera.
Arrepende a mente, o corpo ressente.
Lamentavelmente foi o cio da boca
o contrassenso da pele muda que resmunga.
Se eu escrever que sussura a mentira agora,
estou a dizer que urra. E que o desejo aflora.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A RODA

Como gira a roda, como gira.
Às vezes estou em cima,
vejo tudo o quê está embaixo, pequeninos brinquedos de Deus.
Às vezes estou lá embaixo,
olho para o alto e tudo está longe, inatingível. Intocável Paraíso.
Confio no giro.
Estou a girar.
Ora imortal como os Deuses, ora suscetível espécie de gente.
A roda girou de forma brutal, violenta.
Perdi os sentidos, fiquei desatenta. Inconsciente.
A roda gira pra me lembrar, que nada fica no mesmo lugar.
O tempo presente é o único tempo que me pertence.
Aguardo em movimento, mas em silêncio.
O instante de amar e amar girando bem devagar.