sábado, 17 de setembro de 2011

Carta Crua para Ione Neix Campos | Imaculada


Como você poderá saber quanto arde uma carne viva, sem que você rale o joelho, o queixo, o cotovelo?
Olhe bem pra carne viva, grite muito enquanto ela sangra, morda uma toalha enquanto esfregam sobre ela as gazes, enquanto pingam sobre ela o mertiolate, a água oxigenada, enquanto limpam sua carne viva para que ela se regenere livre das infecções.
Olhe bem pra ela.
Como você poderá saber quanto dói uma saudade, sem que você se afaste, sem fique longe, sem que de tão distante você esqueça até o cheiro, os traços, a voz, o jeito?
Que de tão distante, ter de lembrar é esforço pra mente, ter de  lembrar como era, é neblina, fumaça, é quase esquecimento, é preciso fechar os olhos, talvez  ouvir uma música, rever uma fotografia e sentir saudade de uma sensação que o corpo desabituou.


Viviane Fracari




Você pode sentir a dormente cicatriz.
Você pode sentir um abraço que de tão bem dado remonte a cena do crime, que como num ensaio de um espetáculo, de uma representação, uma simulação, um psicodrama,  resgate a sensação de preenchimento, de enxerto na carne, de enxerto no peito.
É pra poucos esse sentimento.
Deveria ser proibido, principalmente se protagonizado por alguém tão imaculado.
Deveria ser proibido para meninas tão ninfas, para nereidas, ondinas, fadas e pianistas.
Deveria ser proibido, mas não foi...






Convidamos a donzela à subir na escada rolante e desembarcar no piso superior e receber da vida uma grande  recompensa, de ser recompensada por ter se sujeitado à descer tão baixo, sem jamais ter questionado, reclamado, sem sequer ter se revoltado com o que já estava predestinado.
Bravo! Bravíssimo!!!
Livre, ela está livre, ela receberá de volta exatamente tudo o que perdeu.
Ela terá de volta tudo o que é seu.
Cada moeda, cada fatia, cada pacote, cada porção, tim-tim por tim-tim, tudo será colocado de volta no seu lugar.
E para abençoar sua bravura de valente guerreira, ela terá ao seu lado, para ajudá-la sempre que necessário, a experiência de quem desceu aos infernos e agora reconhece de longe o perigo, o inimigo, o traidor, o mentiroso, o enganador.
Com a sabedoria da queda e da partida, ela atrairá para perto dela somente o bom da vida. Fim.







segunda-feira, 12 de setembro de 2011

carta muito crua | O AMOR E O HORROR

Foto Viviane Fracari
Eu quero fazer um escândalo bem grande. 
Virar tudo de pernas pro ar, provocar uma catástrofe nuclear.
Eu quero puxar os cabelos, bater na cara, cuspir e chutar. 
Eu quero fazer tropeçar, quebrar os dentes, empurrar escada à baixo.
Eu quero que se dane, que se foda, que se lasque, que se ferre.
Quero saber de mim!
Quero passar por cima, esmagar, atropelar, fazer sangrar, esfolar, cortar, arranhar.
Quero saber de mim!
Estou devolvendo o carinho recebido, devolvendo o beijinho, os agradinhos, os docinhos, as lembrancinhas, as mentirinhas embrulhadas pra presente.
Quero saber de mim!
Da minha pouca vergonha, da minha cara de pau, do meu pouco caso, do meu descaso, da minha violação.
Quero cuidar do meu quinhão.
Da minha cria, do meu pão, da minha casa, do meu chão, do meu interesse, da minha obrigação.
Quero ser pra mim, não quero dar satisfação, quero mandar embora, dar o fora, quero sair sem me despedir.
Quero ser em mim.
Tudo bem?
Sim!
Estão todos bem, ninguém saiu ferido, nem tudo que eu quero, eu consigo.
Estão todos bem, foi só um delírio, eu digo que quero, mas não concretizo.
Estão todos bem, foi só um latido, a cadela é banguela, só late, não morde, grita sem dar golpe.
Ficaram assustados com o verbo solto, selvagem, com a verborragia externa?
Eu externo no verbo pra não externar na carne, pra não virar ferida, bereba, espinha.
Eu externo no verbo pra não externar na pele.
Porque o verão está chegando e eu quero sair de mini saia, de mini blusa, com as costas de fora, com os ombros à mostra. Quero estar com pele boa, quero estar de cara limpa.
Externo no verbo meu inferno pra viver em paz com o universo.
Em paz com tudo que sou.
Com o Amor que há no meu Horror, se houver...



quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A Carta Crua | Black out




Viviane Fracari
...vai levar ainda três dias pra ela começar a crescer, disse o velho jardineiro.
Mas com um pouco de luz artificial, ela até pode te obedecer. 
Uma flor na estufa desabrocha?
Sim, só depende de você. 
Porém a  vida em seu ciclo natural, trouxe chuva, raio, trovão e promoveu um black out. 
Escuridão.
Quando o sol despontou, ainda em botão a flor descansava e sem pressa, ao longo do dia, ela foi se abrindo tímida, delicada, feliz por ter dormido com a luz apagada.
Vieram os eletricistas e concertaram a instalação, a luz de mentira voltou ao normal.
Era tarde demais, pois a flor verdadeira se abriu inteira contando apenas com a natureza.
E se faltavam três dias no calendário do jardineiro, pra Cronos faltava menos e o que ele queria mesmo, era que a bela flor fizesse tudo à seu tempo.