segunda-feira, 29 de novembro de 2010

a dúvida

Era lua cheia, ao norte, luz, à leste, a janela que dava pro jardim, ao sul, os três patetas e à oeste, o quadrado fixado na parede. Meditação ativa.
O renascimento sofreu um adiamento por conta de uma dúvida desnecessária: Ser ou não flechada? Que dúvida?
Se é pra nascer de novo, então que seja em grande estilo. Preparem para ela um vestido bonito, tirem as medidas, comprem o tecido, pois as duas costureiras já estão de agulha e linha na mão.
A flecha será certeira, já temos igreja, salão de festa e de beleza, convites, champanhe e bolo com cerejas. Mandaram avisar o padre, já está confirmado.
Depois de tanta devoção, de tanta celebração, de tanto joelho no chão, ela teve a revelação, daí sofreu um escorregão, teve um ataque de bobeira, caiu de novo na choradeira. Tudo por causa da incerteza, do medo de ser de novo ela mesma. Pois bem, agora chega!
É hora de abrir  um sorriso, atravessar o portal e vir pro mundo real.
Está tudo preparado pra ela, só não pode duvidar. No mundo real, quem duvida não realiza. Vem minha filha, vem que tá todo mundo te esperando...

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Meu filho, não vai no fundo, que o mar hoje está bravo!

No centro do palco a grande Mãe: Poder e Paciência.
Uma gestação é lenta...
Sem me aborrecer, sem me ferir, sem temer, sem precisar reagir.
Eu estou no centro, na perna direita: a astúcia, a malandragem e um certo deboche de quem se sacode.
Eu estou no eixo, na perna esquerda: a leveza, a suavidade e um certo ar confiante de quem se locomove.
Avante! Exército triunfante! Desarmado exército, munido de afeto, de intuição, de fluidez e sedução.
Estou em ação, meu movimento está na visão, vejo longe, com modéstia, meus olhos em deslocamento enxergam meu território inteiro.
Território livre, sem fronteiras, sem trincheiras, sem bárbaros e invasores.
Aguardamos pacientemente a proclamação da feliciadade.
Festejamos antecipadamente nossa idolatrada data descomemorada.
A mãe pode no amor, ama em poder.
A mãe espera o tempo que for e é também a esperada temporada.
Pode ser o verão, uma Grande Mãe do Verão, com um leque na mão, um grande chapéu de sol, um vestido de cambráia, óculos escuro, borrifador, bloqueador solar. Ela está gritando à beira mar com seus filhos que estão a brincar nas ondas. Ela tem medo da maré, mas confia e encoraja sua cria, que sabe se benzer antes de entrar no mar, que sabe nadar, que sabe, que ela está alí, deslumbrante, em seu traje de madame, mas se precisar se jogar pra desafogar um filho engolido por Netuno, ela arranca tudo e num braço só traz à tona o filho, traz o fôlego, o pulso, a vida.
No centro da cena está a atenta e divertida Mãe do calçadão, do chinelinho de dedo, do sorvete, do milho verde, da canga, do guarda-sol, da caipirinha de abacaxi, da bicicleta, do biquíni, do maiô, do amendoim, da esteira de vime, do castelo de areia, do pôr-do-sol, do repelente, do nariz vermelho, do calor, do calor...

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Vênus não te quer aqui. Pra fora!

Eu quero que você volte para o seu lugar e quando eu precisar de você, eu te chamo.
Eu não quero resolver as coisas na base da maldade.
Eu não quero que você atue em mim.
Não sou mais compativel com sua vontade.
Minha Vênus quer se relacionar com o mundo através do ingênuo, do alegre, do brincante, do companheiro e amante engraçado e inspirado a deixar que eu viva em liberdade.
Você não me obedeceu, me mordeu, me violentou, invadiu meu sonho, me fez perder o sono.
Não se atreva a aparecer de novo. Gosto de você, mas quanto ao amor, você está para sempre dispensado.
Lugar de enchapelado é em briga de galo, em boteco engordurado ou na casa da mãe Joana. Se manda, se manca!

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Arrogante, eu?

Elas conversaram a noite inteira, em noite de lua alta, orvalhada, lágrimas de lua sobre as calçadas.
Estavam preocupadas com a situação desesperada, com a profunda imersão que uniu num só momento o silêncio, o isolamento, a introspecção, a subjetiva sensação. Preocupadas com a recuperação diante de tamanha destruição, conversaram muito, consultaram livros, sabiam sobre os riscos de tal mergulho, quase um suicídio, um terrível estrangulamento irreversível. Talvez tenha mesmo sido. O fim de um castigo.
E foi, o fim... Pergutaram à ela, se ela já havia pensado no assunto, se estava certa de sua decisão, se tinha levado todos os lados em consideração. Pediram para que ela pensasse novamente, que revisse, que voltasse atrás, que tivesse compaixão, que fosse razoável na determinação. Pensou. E lembrou que a meses estava sentada num banquinho desconfortável justamente a pensar. "Agora você vai ficar sentada aí pensando em tudo o que você fez, menina malcriada, menina levada, menina mimada..." Há meses estava condenada ao banquinho onde colocaram-na sentada, ficou a pensar por horas, dias, semanas, meses... E depois de muito pensar e orar e rezar e orar e rezar e orar e rezar pedindo perdão pelos seus atos, pedindo a remissão dos pecados, pedindo água, sono, pão e o fim daquela punição. Ela foi atendida, chegaram então elas, as duas deusas avessas, uma a gargalhar e outra a chorar, uma disposta a pegá-la no colo e outra exigindo que ela saisse dalí por conta própria, que simplesmente levantasse e saísse, que mandasse todas a merda, que mandasse todos pro inferno, chutasse o banquinho longe, e junto com ele todos os pensamentos que há meses torturavam sua mente. A outra complacente, chorava torrencialmente, deu-lhe um beijo, um abraço e num gesto suave conduziu-a até a saída, longe do castigo, longe dos gemidos, das torturas, dos maus-tratos, pois sabiam elas que, a menina era bela, gentil, amável, sincera, generosa e que agora deveria ser justa com ela mesma, com suas verdades, com suas crenças, com seus desejos, com suas DEUSAS. Parou de pensar e agiu imediatamente, sob a protenção da Senhora do Mar e da Cigana de Marabô. Elas orientaram suas ações, sabiam de todas as reações, cuidaram pra que ela não caísse, pra que que ela resistisse, pra que não se curvasse mais uma vez frente a humilhação de ser julgada, crucificada e acusada cruelmente por não ter preparado a sopa e por não ter limpado com com satisfação a merda do cão. Todo os resto de sua dedicação foi em vão, tudo que ela chamou de amor, não passou de obrigação, de um esforço feito sem nenhuma recompensa, sem beijo de reconhecimento, sem afago de agradecimento. Foda-se seus sentimentos. "Sente-se no banquinho e pense no seu fracasso, na incompetência da companheira preguiçosa, desplicente, mal humorada,  de cara amarrada, contrariada, infeliz e descuidada. Pensou?"
Pensei e cheguei a seguinte conclusão: O banquinho está vago, coloque quem você quiser no meu lugar, cansei de pensar, cansei do castigo, cansei desse banquinho. Rainhas estão habituadas aos tronos. E eu estou sentada no meu. Confortavelmente sentada.

domingo, 7 de novembro de 2010

no ventre do novo mundo

Há mais razão na paixão que na escolha de ficar em suspensão.
Há mais emoção no ganha-pão que na desvairada aventura da contravenção.
Há mais razão no descontrolado movimento que na segurança de ficar ileso.
Há mais emoção no controle da situação que na loucura sem expressão.
Há mais razão em mergulhar no escuro que no clarão que cega a visão do invisível mundo.
Há mais emoção em vislumbrar a sorte que percorrer a trilha incerta, se deparar com a morte.
Há mais razão no silêncio solitário do abismo proclamado,
que na companhia ingrata que mantém a vítima conformada.
Há mais emoção no perfil solene do digno sobrevivente,
que na febre ardente, do delírio demente, sorridente, do emergente.





É na conquista do novo mundo que piso o chão e caio das nuvens, que abro os olhos e fecho a boca, que abro a boca e fecho os olhos. E da água ganho um beijo. Do ar, ganho um suspiro profundo, lento. Do fogo, ganho uma mordida bem gostosa na virilha. E da terra, ganho um ventre acordado, vivo, fértil, criativo.







O mundo novo é meu, estou invadindo meu corpo com minha alma, entro sem bater, agarro com força, separo as coxas e gozo a vida satisfeita com a oferenda que ela preparou pra mim. Que seja assim...









terça-feira, 2 de novembro de 2010

Banho de Rosas Amarelas | texto de Adriana Azenha e fotos de Viviane Fracari | Atrizes: Camila Bevilacqua, Silvia Fuller, Juliana Passos e Fernanda Nocam.





Ela vai preparar um banho de cheiro para a menina e seus sentimentos.
Os sentimentos estão sedentos de água e unguentos.
Estão mostrando os dentes, os sentimentos doentes.



Estão uivando na noite, assombrando a menina que, sozinha não consegue dormir.
Os sentimentos serão lavados e o ranger dos dentes e os assombros da noite desaparecerão, com águas, as mágoas serão levadas.
A menina ficará sob a proteção de sua mãe.
Depois do banho, um descanso, um sorriso, um vestido bonito.





Durante o banho uma canção na voz de sua mãe, ora ieiê ô, sua mãe chorou pra ela deixar de chorar.
Ela sairá do lugar triste onde está, não vai mais apanhar, nem levar bronca, ninguém mais vai lhe castigar.
Sua mãe vai segurar-lhe a mão, vai deitá-la em seu colo, vai acariciar seus cabelos e depois dar-lhe um beijo.
 A menina vai dançar, brincar, rir, se divertir e nunca mais, vai deixar nenhum mal lhe atingir.