domingo, 4 de dezembro de 2011

Recolhimento sob a proteção dos Querubins


O Miolo da Missiva recolhe suas palavras por um período indeterminado.
A Cartas Cruas se encerram.
O que virá, ainda é mistério.


Os Qrerubins ciudarão da Casa e avisarão a hora certa da retomada.


Silêncio é a lição do ancião. Poucas palavras, sábias palavras, iluminação.
Para saber a hora de parar, precisei consultar a espada e as letras.
Nenhuma cabeça será cortada se as letras formarem a palavra secreta dentro de um jogo de forca. As crianças brincam de forca, de guilhotina, de cabeça que se arranca, se chuta, rola e depois se encaixa de volta no pescoço. Brinquedo de montar e desmontar, brinquedo de embaralhar e depois empilhar, brinquedo de ocultar, segredar e depois desvendar a palavra para que a forca não seja usada.


Foto de Vivi Fracari


A palavra.
Quantas Letras?
Quantas Vogais?
Quantas Consoantes?
Uma dica: a letra que inicia e a letra que terminna.
Qual Idioma?


Ou...
Não há Palavra.
É hora de brincar de SILÊNCIO.


Até Breve!






terça-feira, 29 de novembro de 2011

Cena escrita por Adriana Azenha para o encerramento da Oficina "A Prática do Teatro Autoral".



Personagens:



Mãe


Filho


Rádio


Homem


Avó


Pai








(Mãe e filho dentro do carro voltando da escola, a mãe está dirigindo, o filho está no banco detrás chupando o dedo, idade da mãe: 35, idade do filho: 5, trânsito lento. Sentada na frente da Mãe está a atriz que fará o Rádio, sempre que a Mãe tocar o nariz da atriz, ela deve improvisar a sonoriade do rádio, nada deve ser combinado, o Rádio só pode ser ligado/desligado pela Mãe ou pelo Filho).


Mãe: Tudo bem na escola hoje?


Filho: Tudo.


Mãe: Tem lição?


Filho: Tem.


Mãe: Comeu o lanchinho?


Filho: Comi.


Mãe: Comeu tudo? (olhando pelo espelho retrovisor) Tira o dedo da boca Júnior!


Filho: Eu to com fome.


Mãe: Já-já a gente chega em casa e vc come. Ta bom?


Filho: Tá chegando?


Mãe (pensando alto): Que merda esse trânsito! Olha lá o idiota fechando o cruzamento, caralho, puta que pariu, ninguém merece...


Filho: Mãe, não pode falar palavrão!!! "Idiota" é palavrão!!! Mãe você vai muito devagar, se fosse meu pai já tinha passado todo mundo, meu pai é mais rápido que você, ele corre mais, você é lerda mãe, eu tô com fome!


Mãe (procurando alguma coisa dentro da bolsa, acha uma bala, abre, divide no meio, come uma das metades, a outra ela entrega  pro filho): Toma! Pega aqui vai, come essa bala. Esse carro está esquisito, não to gostando... a direção está pesada, só me faltava ter furado um pneu... (ela para o carro, desce e vê o pneu furado, resmunga, balbuciando xingamentos, entra novamento no carro).


Filho: Que foi mãe?


Mãe: E agora? Eu não sei trocar pneu. Deixa eu ligar o pisca-alerta. Já sei! O triângulo, tenho que botar o triângulo.


Filho: Liga pro meu pai mãe, o pai sabe, o pai sabe trocar pneu, ele sabe, liga pra ele mãe, eu tô com fome.


Mãe: Fica quieto Júnior, deixa eu pensar, fica quieto e tira esse dedo da boca agora, tira, eu to mandando...


(Ela desce do carro, abre o porta-malas, pega o triângulo, coloca na pista.)



Filho (debruçado na janela): vai demorar mãe? Eu quero fazer xixi, já ligou pro meu pai?




Mãe (assustada): Sai dai Júnior, é perigoso, fecha essa janela, fica sentado quieto aí, não atrapalha!


Filho: Eu tô apertado!






(Ela volta pro carro, um homem numa moto estaciona e oferece ajuda).


Homem: Furou o pneu? A senhora precisa de ajuda?


Mãe: Pois é, furou, eu não sei usar o macaco, a chave de roda, essas coisas...


Homem: Eu troco pra senhora, onde está o macaco?


Filho: Que macaco? Liga pro pai, mãe! Pra que macaco, mãe?


Homem (para o filho): É o macaco robô mecânico, você não conhece?


Mãe: Júnior fica quietinho tá, o... (querendo apresentar o Homem para o filho) desculpa, eu não perguntei seu nome...


Homem: Fábio. E o seu?


Mãe: Eu sou Cibele (para Júnior) e esse é o Júnior, o Júnior vai esperar o Seu Fábio trocar o pneu pra gente. Né Júnior?


Homem: Deixa ele. Quer aprender a trocar pneu? Pede pro seu pai te ensinar, aí da próxima vez que a mamãe precisar vc troca pra ela, né?


Mãe: Ih... Não dá ideia...


(Enquanto o Homem troca o pneu, a Mãe se recorda de uma canção que aprendeu num acampamento quando ela era criança, começa a cantar para o filho com a intenção de descontrair e chamar a atenção, demonstrando graça e simpatia " O Jipe do Padre fez um furo no pneu...concertamos com cliclet..." essa cena deve ser improvisada pelos atores, sugerir um momento de aproximação entre eles, uma leve intimidade, todos se divertem muito, até que o pneu esteja finalmente trocado).


Homem: Prontinho, agora é só levar o step no borracheiro. E aí Júnior? E a fome? E o xixi? Passou?


Mãe: Olha, muito obrigada. Nem sei como agradecer?


Homem: Eu sei...


Mãe: O quê?


Homem: Um café, você me paga um café. Quando? Quando vc pode me pagar um café?


Filho: Eu quero um sorvete, mãe me paga um sorvete!


Mãe: Então me deixa seu telefone.


Homem: Meu cartão, fica com meu cartão. Então tchau Júnior, sua mãe vai lhe dar um sorvete, mas você tem que prometer que não vai mais chupar o dedo. Ou dedo, ou sorvete. Você escolhe!


Mãe: Tchau, prazer. Eu ligo então pra gente marcar o café.


Filho: Vem mãe, vamo embora, eu vou fazer xixi na calça.


(mãe entra no carro, liga o carro e retoma o percurso).


Mãe: Eu vou deixar vc na casa do seu pai, você dorme lá hoje, eu preciso ir atrás de um borracheiro. Sua vó faz uma sopa pra vc bem gostosa. De manhã eu passo lá e te pego, certo?



Filho: Por que o papai mora com a vovó?




Mãe: Deve ser porque a sopa dela é muito gostosa e porque eles fazem companhia um pro outro. A vovó não fica sozinha e nem o papai.(o filho adormece no banco detrás, a mãe liga o rádio, a atriz que faz o rádio deve improvisar, cantando uma canção, dando uma notícia ou qualquer outra situação do universo das rádios, ideia de movimento e deslocamento). Pronto, chegamos..., desce lá e toca a campanhia, enquanto eu termino de estacionar.




(O Filho ainda com sono, desce, toca a campainha, a avó sai, o pai sai logo atrás, todos conversam na calçada enfrente a casa da avó).


Avó: O que ouve?


Mãe: Desculpa Dna Antônia eu vir assim sem avisar.(para o pai) Oi Cássio, posso deixar o Júnior aqui hoje? Ele está com fome, o pneu do carro furou, eu peguei um puta trânsito, ele precisa fazer xixi...


Pai (para o filho): Entra lá filho, vai fazer xixi, vai... o papai já vai lá dar um banhão em você...


(o filho entra na casa da avó).


Avó: Tudo bem, deixa o menino aí, vai resolver tuas coisas, amanhã vc pega ele, num quer entrar um pouquinho, comer alguma coisa...


Mãe: Não Dna Antônia, obrigada, mas eu preciso ir. Ainda vou passar numa borracharia...


Pai: Você sabe onde tem borracheiro aberto essa hora? Não quer ficar aí e eu vou atrás disso pra vc? Não é melhor vc ir pra casa e de manhã vc resolve isso? Sei lá, agora, a essa hora, achar borracheiro aberto...


Mãe: Pode deixar, eu me viro, eu acho que eu sei onde tem um 24hs...e nem é tão tarde assim...


Filho: Vó! Eu já fui no banheiro, agora eu quero comer, o que tem pra comer vó? Pai, o Fábio falou pra vc me ensinar a trocar pneu, vc me ensina? Me ensina pai?


Pai (para mãe): Quem é Fábio? Que Fábio?


Mãe: Você não conhece...


Avó: Bom, então vai minha filha, quanto mais vc demorar pior, vamos entrar, não gosto de ficar de conversa essa hora na rua, é até perigoso, vai com Deus, qualquer coisa liga, tchau.


( Todos se despedem rapidamente, ela entra no carro e liga o Rádio, novamente a atriz/Rádio deve improvisar a sonoridade do rádio).




Mãe (Rindo, cantando e falando sozinha): É tudo culpa do Jipe do Padre. E agora? Eu ligo ou não ligo? (pega o cartão do Homem/Fábio, lê, pega o celular, o celular toca, ela se assusta, desliga o Rádio). Puta susto! (atende o celular) Alô, oi... oi filho... o sorvete? Ah tá, o sorvete... ah vc não chupou mais o dedo... ah sei, o Fábio... Sei.... ele falou né filho? Então... sei... Você escolheu o sorvete né? Então tá... pode deixar, depois que a mamãe concertar o pneu no borracheiro eu compro o sorvete, tá bom? Amanhã depois do almoço vc come de sobremesa, tá bom? Sei... de creme... sei... tá bom...beijo...te amo...tchau.




(Ela liga o Rádio e depois liga para o Homem).



Mãe (em tom de brincadeira, como se estivesse passando um trote): Alô, É da borracharia? Aqui quem fala é a freira amiga do padre, então, ele me passou seu contato, é à respeito de um chiclet, meu pneu furou e... sei... o sr concerta? (risos) Ah sei... onde? O quê? Se eu chupo dedo? Não, larguei faz tempo... Sorvete? Sim! Onde? Tô anotando... (risos).




(O Rádio segue ligado).


Black-out.

A Oficina "A Prática do Teatro Autoral" ocorreu no período de outubro à novembro de 2011 na  Oficina Cultural Oswald de Andrade, como parte do Projeto da Cia AZENHA DE TEATRO.


domingo, 20 de novembro de 2011

A Carta Crua | Minha mãe não sabe o que tem atrás da montanha. A montanha dela era outra.




Foto de Viviane Fracari

Eu conheço um caminho, li num livro, fiz uma viagem, conheci uma mulher, sei sobre uma lenda, já escrevi em um poema, trabalhei com uma pessoa, um amigo me contou, tem um filme que eu vi, já sofri de uma dor, me ofereceram uma fruta, sei uns passos dessa dança, já cantei essa canção, dirijo automóvel e até um caminhão, já desci nessa estação, entrei nesse museu, venho há anos neste parque, tinha uma árvore ali, cortaram, hoje tem outra bem pequena aqui, replantaram, eu acho. 


Terminei e comecei milhões de vezes, entre um sol e uma lua, entre uma porta e outra, entre um ano velho e um ano novo, fiz muitos inícios, vivi muitos fins, infinitos fins, términos intermináveis, couberam muitas tentativas dentro das horas, dos dias, dos anos velhos em que me renovo.

Só posso saber o quanto sei na medida do quanto ando.
Só posso saber o quanto sei na medida do quanto caio.
Só posso saber o quanto sei na medida do quanto me levanto.
Só posso saber o quanto sei na medida do quanto me lanço, me jogo, me ergo, me solto...

E para saber sobre o que não sei é preciso não querer saber, é preciso apenas saber o que alma curiosa pretende conhecer, é preciso apenas um corpo aventureiro com desejos simples e raros, desejos de alimento e gozo, de carinho e conforto, de movimento e silêncio harmonioso. E tudo isso, que também é pouco, só se sabe quando já não se é moço, quando já se pronunciaram as rugas, quando já se embranqueceu a fronte, quando já há uma promessa de velocidade média no ritmo da pressa.

Tenho um filho, já moço, um ex menino, um quase homem, um fazer-se humano dentro do tempo que nos amadurece. Esse filho, que ora cresce, ora se apavora com as cobranças do fim da infância, vai saber sobre não ser, vai conhecer um trauma, receber uma notícia, quebrar uma louça, tropeçar numa pedra, escorregar no molhado, vai se lembrar de um abraço, vai acordar de um sonho, vai comprar flores, vai escrever cartões, vai rasgar fotografias, vai queimar poesias. 

Vou aplaudir seu andar sobre a terra, seus buracos e crateras, suas areias à beira mar, suas rochas, suas montanhas íngremes, seus desertos áridos, suas casas, quantas forem, suas famílias, quantas, seus amigos, quantos, seus projetos, o quase, o desastre, o sucesso. Cada caminho tem seu dono, cada anjo seu guardado ser humano. Tem um anjo que guarda meu filho e que dá a bandeirada de largada desta corrida que começa acelerada e que termina num respirar profundo, num ganhar mais fôlego para desfrutar tudo que é aprendido, a matemática das contas, o português das broncas, a química dos corpos, a física dos astros, a biologia empírica, a filosofia, a arte e a magia... Filho de bruxa, bruxinho é...

Abracadabrasaramalé. Faz esse meu filho ser quem ele é!!!

http://www.youtube.com/watch?v=0q5kbMdw7Bk

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

CARTA CRUA | Peso Pena



Quantos vieram me chamar?
Eram muitos e sei que eram bons.

Foto de Viviane Fracari

Então está concluído. 
Não há resposta que o tempo não dê.
Não há apelo que não possa ser feito.
Tenho oito ferraduras para oito patas. 
Sou veloz e astuta como uma aranha a tecer a teia.
É tempo de armazenar o alimento.
Entrei com a apelação, consegui a redução da pena.
Agora pesa menos que a peninha da asa de uma andorinha.
Ficou leve, fiz a transferência do fardo, ficou nas costas de outro condenado, não carrego mais, deixei para trás.
Desejo que o fardo, esteja ele onde estiver, seja aos poucos aliviado.
Que seja leve para todos, que sejamos todos condenados a viver sem a cólera, sem precisar de misericórdia.






Minhas oito pernas são mais rápidas que minhas ideias.
Chegam antes meus passos, quando vejo já estou dentro de um novo espaço.
Chegam antes meus pés, minha cabeça chega apenas para contemplar a fincada bandeira sobre a terra seca.
Vitória! Conquista! Sou guerreira, talvez muito antes de ser sereia.
Obá xirê!
Seja bem-vinda sua cavalaria.
Estou no governo do estado novo.
Vou nomear meus ministros e dar pão e circo ao meu povo.
Farei meu pronunciamento em cadeia nacional.
Cantem hinos, soltem fogos, proclamem comigo.
Pois com as mãos no peito e o olhar elevado, respeito com devoção a hasteada bandeira da minha renovação.




quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Carta Crua Para Sérgio Duarte | A Promessa.




Foto de Viviane Fracari
Tanto faz, quanto fez.
Tarde demais, já misturei...
Já não sei quantos eram, tantos foram, outros vieram.
Não sei se de manhã, se de tarde, se verão ou inverno.
Quanto importa o tempo para o mistério?
Hoje estou disposto a crer no credo fora da cruz.
Ontem fiquei inquieto, mas só sei agora, na hora achei que estava certo.
Por enquanto observo.
Depois pondero.
Antes não levava a sério a duração do vento sobre o relevo da montanha.


Durante o intervalo do sono, um minuto pode ser um século para o pesadelo.
Quero sonhar que perdi a hora, que não fui, que me atrasei e me desocupei do compromisso.
Quero acordar já tendo cumprido o dever, já tendo feito as obrigações.
Quero acordar sem o despertar sonoro do relógio, sem o escuro da noite.
Quando for dia, quero fazer com tanta alegria minhas tarefas.
Tanto faço, quanto fiz, são tarefas que entregues no prazo, aguardam seu valor para que cheguem as recompensas.
Tantas quantas o quando mereço.
É o tempo rendido frente ao misterioso destino que de todos se faz desconhecido.
Revela-te diante de mim, oh prometido!



domingo, 30 de outubro de 2011

A NOVA CARTA | As Missivas dos Trunfos Delas


É debaixo de chuva que inauguro a sequência de A NOVA CARTA.
Informo aos leitores sobre a chegada dos hóspedes de O MIOLO DA MISSIVA - Quando a obra escolhe seus criadores (Obra de Arte, também conhecida como Teatro). Em exposição na Oficina Cultural Oswald de Andrade, o grande anfitrião.
A chuva que agora cai neste domingo, que "por acaso" é de Círio de Nazaré, vira o tempo, traz o céu cinzento, o vento frio e o movimento molhado. Som de água no pneu dos carros, silêncio, observação e reconhecimento dos muitos caminhos. Todos os caminhos são bons!


Foto Viviane Fracari
O Tempo virou...
A carta é nova, são as missivas Delas.
Ao longo da jornada, quatro atrizes, os quatro pés da Mesa da Criação, a Mesa do Mago - o trunfo número 1 do baralho, realizarão uma sensível tarefa. As quatro atrizes utilizarão seus instintos...

Comemos porque temos fome, respiramos e nos aproximamos quando o cheiro é bom, sentimos o cheiro do enxofre e dos lírios, não dispensamos o metano, apenas nos afastamos, mas não negamos sua presença, não tapamos o sol  com a peneira. Sentimos o gosto da sujeira retirada com os dentes de debaixo das unhas, esfregamos a unha no coro cabeludo, às vezes usamos uma escovinha e em alguns casos aparamos as unhas, deixando-as bem rentes a carne.

Dente debaixo da unha, unha no cabelo debaixo do chuveiro, escovinha, unha curta, carne dolorida. É com as unhas dos nossos bichos que iremos remover, cavar, arranhar, coçar, rasgar, caçar. Usaremos unhas, pois as temos.
Quem tem unhas?
As Missivas dos Trunfos Delas, dos Quatro pés da mesa.
Os quatro trunfos sustentam A Nova Carta.
Uma chave para cada quarto. Um hóspede a cada espetáculo.
A cada sessão de O MIOLO DA MISSIVA, uma nova carta será escrita para identificar e nomear o quarto desta estadia.
Ao longo da temporada publicaremos A Nova Carta. Serão 8 cartas, uma por sessão, apenas 8 hóspedes contemplados.

Foto Viviane Fracari

Acompanhem.
Compareçam!
Divulguem...




Adriana Azenha
Cia Azenha de Teatro.



29 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Solar
O Quarto de Baco

Quanta honra estar entre os Deuses.
Quanta honra estar frente a Ela.
Quanta honra estar sob o holofote forte e quente a derreter meu gelo.
De repente estou em cena.
Sou o personagem da história de amor do livro Dela.
Sou também o moço da improvisação, posso estar ajoelhado aos pés de Deus, posso estar sentado num carro dirigido por uma mulher, posso estar alcoolizado rindo a toa.
Quem sou eu no meio dessa gente toda?
Sou plateia ou sou persona?
Quanta coisa eu desconheço, está na hora de assumir que não gosto porque não entendo.
Mas gosto dos desempenhos, da coragem, do desbravamento.
Estou frente aos Mestres, mas Eles não me conhecem, Eles erram, tropeçam nas falas, confundem as marcas, fazem piadas sem graças, às vezes são ridículos, patéticos, são reais em suas dores, sofrem como os homens, os Deuses chovem lágrimas. Os Mestres não fizeram a lição de casa. Que palhaçada!
Essa mulherada desenhou um foco para minha atuação, não acendam os refletores antes que eu esteja preparado para subir ao palco e representar o fracassado Deus ou o aclamado e despretensioso ator do espetáculo. Bravo! 




28 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Denise Moraes
O Quarto dos Princípios

Não nasci árvore, nasci ser humano.
Ando porque tenho pernas, não crio raízes.
Se por acaso as tenho, não estão na terra, estão nos princípios.
Sou do cosmos, sou cosmopolita.
Mas quando viajo não levo a sério meu roteiro.
Planejo, mas me divirto com o imprevisto, me surpreendo.
Confesso ter planejado outro trajeto, outra recepção, outro toalete, outro teatro.
Porém aquilo que me foi apresentado, eu degustei sem nenhum obstáculo.
Quando me vi já estava a girar com as saias, com as palavras, já estava arredondada.
Não contava encontrar em local tão anárquico, uma legislação tão clara.
Senti-me autuada, fiz questão de demonstrar meu cumprimento às leis deste estabelecimento.
Conheço os jurados, o réu, os advogados. Eu só não sabia que a juíza seria eu mesma, ali sentada, dando o veredicto e a sentença à condenada.
-Absolvida!




22 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Vera Boschi
O Quarto do Todo


A parte de mim que quis ficar, se preparou, se perfumou, pagou pra ver e se sentou mal acomodada em uma arquibancada.
A parte de mim que ficou, comeu e gostou do tal do pão que o Diado amassou.
A parte de mim que prevaleceu, conteve o mal estar e quando me dei conta, já não era parte, era o todo, meu corpo, um só corpo satisfeito com a aquisição efêmera que a matéria me proporcionou.
Satisfeita!
Depois de ter sido vencida por mim mesma, fiquei apaziguada e me entreguei a divertida jornada.
Segui apreciando a bela vista sentada na janelinha.
O passeio que quando começou, mais parecia estar sendo liderado por um bufão anarquista, revelou-se uma excurssão onde o guia turístico era eu mesma  frente a uma legião.
Passei de liderada à lider da passeata.
Gostei da bandeira que carregava.
A bandeira da liberdade conquistada!




21 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Mauro Lima
O Quarto da Autoanálise


Que conhecimeno é esse que se aplica a minha vida?
Conheço tudo: gestos, palavras, tipos, falas.
Tudo me é muito familiar...
Conheço de tanto estudar, ler, investigar.
Onde se aplica?
Na vida do outro, não na minha.
Onde se aplica?
Passou muito tempo, não me ative a prática deste conhecimento.
Ainda dá tempo?
Claro, todos somos feitos deste mesmo barro.
Fêmea ou macho, somos todos farinha do mesmo saco.
Deste enfadonho conhecimento, que acho longo, cansativo, repetitivo, lento.
Levo pouco, mas levo mesmo, levo o entendimento de que pouco me conheço.
E que na vida do outro, mesmo que feio, às vezes me reconheço.




14 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Flávio Yamamoto
O Quarto do Looping


E se der tudo errado?
Melhor que eu dê a cara à tapa para que a bordoada venha de uma só vez.
Que eu aprenda a cair da bicicleta antes de conhecer o equilibrado corpo sobre as duas rodas.
Que eu seja lançado: movimento centrífugo, looping...
Como um motoqueiro de circo em seu globo da morte.
Quantas quedas exercito antes de mostrar meu virtuosismo?
Para o público sou um louco irresponsável que arrisca a vida? Um suicida?
Mentira!
Sou um apaixonado que num treino solitário pratica o cálculo exato.
Giro e caio no meu esconderijo, ninguém assiste minhas derrotas, minhas quedas.
Caio e me levanto, giro e caio, me ergo, me arrebento, giro e caio e depois de muito ensaio, estou pronto pro espetáculo.
A bela donzela rói as unhas na plateia, ela não conhece meus arranhões, meus hematomas, minhas lesões.
Debaixo do meu macacão guardo as marcas da minha profissão.
Para que a linda moça suspire aliviada, ofereço a ela a ilusão do pouco esforço, do desafio às leis da física. Ela não precisa saber do cotovelo ralado, do pulso aberto, do joelho roxo, do tornozelo torcido.
No fundo ela sabe, mas finje não saber, do mesmo modo como finjo não doer.




15 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Ana Claudia Souza
O Quarto do Imaginário


Quem são essas pessoas?
Que lugar é esse?
Não conheço esse idioma, esses gestos, essa forma arquitetônica.
Quero ir embora. Fecharam a porta?
E agora? Onde coloquei a chave?
Deram-me uma cópia?
Não, a chave que me deram pertence a outra porta.
Estou no meio da história, já faço parte.
Esqueço as horas, não consigo ver as horas, os ponteiros sumiram do relógio.
Estou desconfortavelmente envolvida em uma trama desconhecida.
Aos poucos identifico alguns rostos, às vezes me comovo e mesmo sem enxergar, acredito.
Está quente aqui, estou com sede, estou suando.
Estou num deserto, estou gostando...
Quantas cores, quantas vozes, quantos risos, acho até que ouvi alguém chorando baixinho.
Por que choram?
Riem de mim? Choram por mim?
Estou sendo interrogada. Querem que eu confesse que estou encantada.
Melhor não dizer nada, ficarei calada para que não usem contra mim, as minhas palavras.




07 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Guilherme Pinca
O Quarto do Grito


Que gritaria!
Que barulho fazem os vivos ao falarem com seus pares.
Quando ofendem os transeuntes.
Quando gritam nas filas, nas delegacias, nos estádios, nos orgasmos, nas feiras livres e nas folias.
Que gritaria!
Que barulho fazem os vivos quando sentem raiva, desejo, euforia, medo.
Quanto barulho.
Quero botar ordem nesse galinheiro.
Quero organizar a balburdia, ordeno que silenciem e que ouçam calados minhas instruções.
Preciso trabalhar, me concentrar, ganhar dinheiro para me sustentar.
Preciso planejar, arquitetar um jeito bom de prosperar.
Preciso me familiarizar com o caos, reverenciar a confusão, aprender a conviver com a corrupção, com a traição, com a vergonhosa mentira da corporação.
Sou parte deste vozerio, deste coro escandaloso.
Vou entrar na festa, vou soltar a voz, vou gritar mais alto que o mais alto dos gritalhões.
Vou fazer tremer as estruturas.
Quando o galo cantar, meu exército se erguerá e lutará sem que eu precise me alterar.
Quando eu reconhecer meu grito, o meu silêncio, que tanto preciso, chegará.




08 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Luís Deschamps
O Quarto das Paredes


Quem vem lá?
Um homem nu, um homem azul, um homem do sul.
Vem despido de vaidade, vem iluminado, vem do canto baixo do território mapeado.
Será recebido com vaias, ovos e tomates.
Ficará indefeso no centro da arena, disfarçando sua tristeza.
Depois que a cortina fechar, ele vai se limpar, vai chorar escondido, vai sentir vontade de matar, de bater, de se vingar.
Vai soltar uma gargalhada descontrolada.
Vai se assustar...
Vai sentir um ódio que ele nunca soube cultivar, vai se surpreender com a força do seu soco contra parede, a parede vai rachar, trincar, os tijolos vão se soltar, o velho teatro irá desmoronar.
Ele ficará soterrado, imobilizado, tentará pedir ajuda, ninguém o ouvirá, ele começará a rezar, a implorar para que alguém venha lhe salvar.
Os cães farejadores o encontrarão.
Ele sobreviverá. O velho teatro agora está em ruínas, mas o homem arruinado sobreviveu e contará a todos o que aprendeu sobre a vergonha e a revolta, sobre a ira e a falta.
A falta de ar...
Em praça pública ele será aplaudido. Quem vem lá?
O mesmo homem,  num teatro sem paredes.


Foto Viviane Fracari





quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A Carta Crua Do Fim Da Primeira Jornada | Com a faca na mão, posso, sem querer, cortar a língua.


Eu gosto de abacaxi, mas desde menina convivo com o fato chato de que o abacaxi é um fruto que me provoca aftas.
E aftas ardem e doem, rsrsrsrs... 
Passei minha vida desafiando o abacaxi, dizendo a ele: "Olha, eu vou te comer e desta vez não vai acontecer nada, meu organismo vai achar um jeito de vencer essa reação e eu vou finalmente comê-lo sem nenhum arrependimento”.
Comer ou não comer? Eis a questão.
Às vezes consigo abrir mão do meu desejo, às vezes não. Então pago o preço do desconforto, do incomodo, só pra poder provar o gosto. As aftas vêm e depois vão embora, eu ignoro a presença delas, desprezo a dor, não amorteço, não tomo remédios, não evito o tempo certo de virem e irem, não faço nada, não me privo de nada, convivo com elas e esfrego na cara delas minha duradoura satisfação em ter comido o fruto proibido. 
Valeu à pena. Não sei por que meu corpo rejeita, não sei por que, mas já não me interessa mais saber, eu vou apenas comer quando a vontade bater e o problema é meu, somente meu...
Não me compadeço com esse sofrimento, não ligo, experimento por algumas semanas a ferida em minha boca, experimento a ferida, ela me deixa mais calada, ela me deixa um pouco amuada, fico sentido o ardido da pasta de dente, do molho de macarrão, da mexerica e de outras presenças da minha rotina que ficam alteradas durante a permanência das aftas. O abacaxi fere a minha boca. Fecho a boca, penso que quando meu corpo quer muito comer abacaxi é porque tenho falado demais, comido demais, aberto demais a boca para vida e então me preparo para os resguardos que o abacaxi promove. Eu amo o abacaxi.
Quando alguém me convida a comer uma fatia de abacaxi, fico a pensar se não haveria um jeito de comê-lo sem precisar comer de verdade. Será que posso comer sem comer?  Posso sentir o gosto sem provar? Posso sonhar que estou comendo e em sonho ficar saciada? Posso sentir o cheiro e imaginar que estou comendo?
Não, não posso.
Acreditem ou não, sinto a boca rachar só de olhar para ele...
Aceito a reação do abacaxi no meu corpo. Aceito a mudança no meu corpo que o abacaxi me oferece.
Não sinto pena de mim. Não sinto arrependimento. Comer é uma escolha consciente.
Um silêncio em minha boca...
Deixo para os incomodados e os desconfortados, a tarefa que antecede a minha degustação.
Deixo para os fortes e os valentes, a afiada faca que corta e descasca o abacaxi.
Eu simplesmente como, já descascado, bem servido, cortado.
Como, mas não descasco, aliás, se precisar descascar, desisto imediatamente e me sirvo de outro fruto, substituo. Pois se para ficar calada eu ainda tiver que enfrentar a faca, deixo pra depois.
A vontade passa... Vou comer pêssegos, pêras, maçãs ou ameixas.
Ah... E ameixas também provocam reações em meu corpo que me oferecem muitas desintoxicações!!!
Aceito!

sábado, 17 de setembro de 2011

Carta Crua para Ione Neix Campos | Imaculada


Como você poderá saber quanto arde uma carne viva, sem que você rale o joelho, o queixo, o cotovelo?
Olhe bem pra carne viva, grite muito enquanto ela sangra, morda uma toalha enquanto esfregam sobre ela as gazes, enquanto pingam sobre ela o mertiolate, a água oxigenada, enquanto limpam sua carne viva para que ela se regenere livre das infecções.
Olhe bem pra ela.
Como você poderá saber quanto dói uma saudade, sem que você se afaste, sem fique longe, sem que de tão distante você esqueça até o cheiro, os traços, a voz, o jeito?
Que de tão distante, ter de lembrar é esforço pra mente, ter de  lembrar como era, é neblina, fumaça, é quase esquecimento, é preciso fechar os olhos, talvez  ouvir uma música, rever uma fotografia e sentir saudade de uma sensação que o corpo desabituou.


Viviane Fracari




Você pode sentir a dormente cicatriz.
Você pode sentir um abraço que de tão bem dado remonte a cena do crime, que como num ensaio de um espetáculo, de uma representação, uma simulação, um psicodrama,  resgate a sensação de preenchimento, de enxerto na carne, de enxerto no peito.
É pra poucos esse sentimento.
Deveria ser proibido, principalmente se protagonizado por alguém tão imaculado.
Deveria ser proibido para meninas tão ninfas, para nereidas, ondinas, fadas e pianistas.
Deveria ser proibido, mas não foi...






Convidamos a donzela à subir na escada rolante e desembarcar no piso superior e receber da vida uma grande  recompensa, de ser recompensada por ter se sujeitado à descer tão baixo, sem jamais ter questionado, reclamado, sem sequer ter se revoltado com o que já estava predestinado.
Bravo! Bravíssimo!!!
Livre, ela está livre, ela receberá de volta exatamente tudo o que perdeu.
Ela terá de volta tudo o que é seu.
Cada moeda, cada fatia, cada pacote, cada porção, tim-tim por tim-tim, tudo será colocado de volta no seu lugar.
E para abençoar sua bravura de valente guerreira, ela terá ao seu lado, para ajudá-la sempre que necessário, a experiência de quem desceu aos infernos e agora reconhece de longe o perigo, o inimigo, o traidor, o mentiroso, o enganador.
Com a sabedoria da queda e da partida, ela atrairá para perto dela somente o bom da vida. Fim.