sexta-feira, 6 de julho de 2012

a Carta do Corpo | O GUIZO



Foto de Viviane Fracari

Então, depois de ter dormido uma eternidade, ela se levantou.
Os joelhos duros, as costas curvadas, o pescoço inclinado para baixo.
Só sabia olhar para o chão.
Logo viu que se tratava de um milagre, pois a sua volta, podia-se ver uma histeria coletiva, uma comoção descontrolada...
Ergueu a cabeça e caminhou em direção ao abraço do vento. Um vento morno que envolveu seu corpo e que com braços longos desenhou no ar um caminho distante, um caminhar para longe, um percurso amplo, uma imensidão, uma visão do sem fim.
Ela caminhou dançando a dança dos ventos e recebeu um novo endereço.
Recebeu muitas coisas novas: roupas, sapatos, anéis, perfumes, colares, lenços, livros e músicas.
Recebeu presentes de todos os tipos: de beijos a toques, de chocolates a vinhos. Eram presentes lindos!
Seu sorriso estava mais bonito, sua pele mais limpa.
Seu corpo surpreendentemente resistente preparou a terra, fez o seu arado e semeou um futuro ensolarado.
Seria possível ela brotar da terra? Seria possível ela rasgar a terra com sua fragilidade de caule novo e sair com seu broto em direção a luz, ao vento, sedenta de água, de terra molhada? Seria possível a semente ventre trazer de volta a mulher que tinha sido dada como morta?
Seria possível fazê-la criar raízes novas e firmar-se de pé e crescer árvore de grande copa?
Seria possível?
Seria possível?
Seria?
Sim, sim e sim. Que sim mais puro nasce junto com ela.
Um sim para vida. Um sim para a misericórdia da vida. Perdoem-me se preciso agora ser misericordiosa, perdoem-me. É preciso ser para o corpo poder renascer!
Olhem bem para ela. Olhem com atenção, ela tem um escudo na mão. Ela tem proteção.
Ela tem coroa e asa. Ela voa.
Ela está prenha de si mesma, orgulhosa de sua fecundação.
Pode dar à luz todos os dias, pode parir cada hora, pode parir sua história.
Não vai olhar para trás, não agora. Não vai olhar para a própria cova, não agora.
Não vai olhar porque não há necessidade.
Não é preciso dizer adeus aos que ficam, fazer agradecimentos, acenar, mandar beijos.
Não, não é preciso. Não aos ingratos, não aos cegos, não aos rudes, não aos rasos, não aos tristes, não aos duros, não aos intolerantes, aos perfeitos, aos senhores de todas as razões. Não!
Não será preciso pedir licença para sair. A casa é minha, a terra é minha, a vida é minha. Estou de saída!
Não aos que ignoram a beleza da minha partida.
Não, não e não. Que não mais puro nasce junto com ela.
E com o sim na mão esquerda e o não na mão direita, ela segue viagem.
Altiva, solene, digna.
Retira do bolso uma fita comprida e colorida com um guizo amarrado na ponta.
Ela amarra o guizo ao seu pescoço, pois sabe que quando ela estiver ausente de si mesma, o barulho do guizo poderá trazê-la de volta, o barulho do guizo anunciará sua presença para que ela esteja sempre presente em si mesma.
FELIZ VIDA NOVA!

Inspirado na sequência: O Julgamento, O Mago, A Imperatriz, O Carro.