quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Amor da Angélica Temperança pelo Enforcado Cabeça de Nabo

Ela suspirava sempre que ouvia uma canção. A música vinha de longe, parecia o som de um velho violoncelo. Seu coração ficava apertado, ela imaginava que mãos eram aquelas que comprimiam as cordas, dedos e cordas e um arco a arrancar espasmos tensos de tal instrumento. Suspirava...e na sua tarefa diária de temperar o intenso e por vezes o desanimado tempo, para chegar ao equilíbrio do lago sereno, distraída, abandonou os jarros e seguiu a vibração até chegar ao local de onde vinha o som. Hipnotizada adentrou a casa e viu ao espiar pela porta da sala um homem sentado, tinha uma cabeça de nabo, um pé amarrado à uma corda e cresciam ao seu lado, uma à esquerda e outra à direita, duas árvores de cerejeiras, estavam recém podadas e de seus galhos ainda escorriam sangue e seiva, lágrimas de cerejeiras. Ele não notou sua presença, continuou tocando, tocando. À certa altura cochilaram ambos, ele abraçado ao chello e ela encostada na parede gelada do corredor que dava para sala. Acordou assustada, pois sentiu sua roupa molhada, notou que a casa estava inundada, a água já chegara aos tornozelos. Ergueu o vestido comprido e já ia saindo quando lembrou-se da música, resolveu espiar novamente a sala e lá estava o violoncelo envergado a boiar na água e ele dependurado de cabeça para baixo e com as mãos atadas. Parecia estar sorrindo e dançando. Ela quis se aproximar, pensou em ajudar, pois se água continuasse a subir ele logo se afogaria, mergulharia sua cabeça de nabo na água fria que rápida subia inflando o vestido dela, resfriando suas pernas. A mobília toda à flutuar. Ela agarrou-se a cerejeira, subiu nos galhos podados como se subisse uma escada, sentiu nos pés e nas mãos a grudenta seiva. Estava ela trepada na cerejeira que estava à esquerda do dependurado, tentou alcançar a corda para desatar o nó do pé, apenas um pé estava amarrado, o outro livre lembrava o movimento de um dançarino de polka. Quando finalmente ela conseguiu chegar até a corda ele gritou " Por favor não solta!". Ela se assustou, desequilibrou e caiu de costas na água que já banhava os cabelos do tal prisioneiro. Por alguns instantes ela ficou a boiar agarrada ao violoncelo. Parecia uma náufraga sustentada por uma tora de madeira sendo levada pela correnteza em direção a queda livre da cachoeira. Lembrou-se dos jarros e do destempero de tê-los abandonado, eles derramaram um oceano de um mar acumulado, salgado. O destemperado mar que ela deixou para trás ao sair em busca da música. Com as asas molhadas, pesadas, encharcadas, tentou voar para botar no lugar o fluxo inesgotável das águas, pois a essa altura já haviam consumido até a cintura o submerso Enforcado, agora afundado com sua cabeça de nabo a criar raiz no imenso oceano. Quando só se podia ver na superfície, apenas o pé esquerdo ainda preso à viga de madeira fixada sobre as cerejeiras, ela recuperou seus jarros e sobrevoou em desespero a casa inundada, adentrou a sala num vão estreito entre o teto e a água, desatou o nó e libertou o dançarino para que ele dançasse com os golfinhos, os cardumes e as sereias. Em algum lugar no fundo do mar, ele esculpiu os corais, esticou as algas e fez surgir um violoncelo. Vive feliz a tocar, a reger, a bailar, transformou o mar em música, são poucos capazes de escutar. Ela escuta. Quando cansada de uma longa caminhada, sempre precisa de um poço pra beber água e enquanto ergue o balde de ferro com a manivela, ela pode ouvir a música  no fundo do poço, no balde, na caneca, dentro de sua boca, na saliva que umidece sua garganta. Ela engole a música, mata a sede, segue em frente, mais contente. Sabe que o amor que tem por ele é nutriente para sua inspiração, para trilhar seu livre caminho, vivido passo a passo e com muita paixão.