domingo, 30 de outubro de 2011

A NOVA CARTA | As Missivas dos Trunfos Delas


É debaixo de chuva que inauguro a sequência de A NOVA CARTA.
Informo aos leitores sobre a chegada dos hóspedes de O MIOLO DA MISSIVA - Quando a obra escolhe seus criadores (Obra de Arte, também conhecida como Teatro). Em exposição na Oficina Cultural Oswald de Andrade, o grande anfitrião.
A chuva que agora cai neste domingo, que "por acaso" é de Círio de Nazaré, vira o tempo, traz o céu cinzento, o vento frio e o movimento molhado. Som de água no pneu dos carros, silêncio, observação e reconhecimento dos muitos caminhos. Todos os caminhos são bons!


Foto Viviane Fracari
O Tempo virou...
A carta é nova, são as missivas Delas.
Ao longo da jornada, quatro atrizes, os quatro pés da Mesa da Criação, a Mesa do Mago - o trunfo número 1 do baralho, realizarão uma sensível tarefa. As quatro atrizes utilizarão seus instintos...

Comemos porque temos fome, respiramos e nos aproximamos quando o cheiro é bom, sentimos o cheiro do enxofre e dos lírios, não dispensamos o metano, apenas nos afastamos, mas não negamos sua presença, não tapamos o sol  com a peneira. Sentimos o gosto da sujeira retirada com os dentes de debaixo das unhas, esfregamos a unha no coro cabeludo, às vezes usamos uma escovinha e em alguns casos aparamos as unhas, deixando-as bem rentes a carne.

Dente debaixo da unha, unha no cabelo debaixo do chuveiro, escovinha, unha curta, carne dolorida. É com as unhas dos nossos bichos que iremos remover, cavar, arranhar, coçar, rasgar, caçar. Usaremos unhas, pois as temos.
Quem tem unhas?
As Missivas dos Trunfos Delas, dos Quatro pés da mesa.
Os quatro trunfos sustentam A Nova Carta.
Uma chave para cada quarto. Um hóspede a cada espetáculo.
A cada sessão de O MIOLO DA MISSIVA, uma nova carta será escrita para identificar e nomear o quarto desta estadia.
Ao longo da temporada publicaremos A Nova Carta. Serão 8 cartas, uma por sessão, apenas 8 hóspedes contemplados.

Foto Viviane Fracari

Acompanhem.
Compareçam!
Divulguem...




Adriana Azenha
Cia Azenha de Teatro.



29 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Solar
O Quarto de Baco

Quanta honra estar entre os Deuses.
Quanta honra estar frente a Ela.
Quanta honra estar sob o holofote forte e quente a derreter meu gelo.
De repente estou em cena.
Sou o personagem da história de amor do livro Dela.
Sou também o moço da improvisação, posso estar ajoelhado aos pés de Deus, posso estar sentado num carro dirigido por uma mulher, posso estar alcoolizado rindo a toa.
Quem sou eu no meio dessa gente toda?
Sou plateia ou sou persona?
Quanta coisa eu desconheço, está na hora de assumir que não gosto porque não entendo.
Mas gosto dos desempenhos, da coragem, do desbravamento.
Estou frente aos Mestres, mas Eles não me conhecem, Eles erram, tropeçam nas falas, confundem as marcas, fazem piadas sem graças, às vezes são ridículos, patéticos, são reais em suas dores, sofrem como os homens, os Deuses chovem lágrimas. Os Mestres não fizeram a lição de casa. Que palhaçada!
Essa mulherada desenhou um foco para minha atuação, não acendam os refletores antes que eu esteja preparado para subir ao palco e representar o fracassado Deus ou o aclamado e despretensioso ator do espetáculo. Bravo! 




28 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Denise Moraes
O Quarto dos Princípios

Não nasci árvore, nasci ser humano.
Ando porque tenho pernas, não crio raízes.
Se por acaso as tenho, não estão na terra, estão nos princípios.
Sou do cosmos, sou cosmopolita.
Mas quando viajo não levo a sério meu roteiro.
Planejo, mas me divirto com o imprevisto, me surpreendo.
Confesso ter planejado outro trajeto, outra recepção, outro toalete, outro teatro.
Porém aquilo que me foi apresentado, eu degustei sem nenhum obstáculo.
Quando me vi já estava a girar com as saias, com as palavras, já estava arredondada.
Não contava encontrar em local tão anárquico, uma legislação tão clara.
Senti-me autuada, fiz questão de demonstrar meu cumprimento às leis deste estabelecimento.
Conheço os jurados, o réu, os advogados. Eu só não sabia que a juíza seria eu mesma, ali sentada, dando o veredicto e a sentença à condenada.
-Absolvida!




22 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Vera Boschi
O Quarto do Todo


A parte de mim que quis ficar, se preparou, se perfumou, pagou pra ver e se sentou mal acomodada em uma arquibancada.
A parte de mim que ficou, comeu e gostou do tal do pão que o Diado amassou.
A parte de mim que prevaleceu, conteve o mal estar e quando me dei conta, já não era parte, era o todo, meu corpo, um só corpo satisfeito com a aquisição efêmera que a matéria me proporcionou.
Satisfeita!
Depois de ter sido vencida por mim mesma, fiquei apaziguada e me entreguei a divertida jornada.
Segui apreciando a bela vista sentada na janelinha.
O passeio que quando começou, mais parecia estar sendo liderado por um bufão anarquista, revelou-se uma excurssão onde o guia turístico era eu mesma  frente a uma legião.
Passei de liderada à lider da passeata.
Gostei da bandeira que carregava.
A bandeira da liberdade conquistada!




21 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Mauro Lima
O Quarto da Autoanálise


Que conhecimeno é esse que se aplica a minha vida?
Conheço tudo: gestos, palavras, tipos, falas.
Tudo me é muito familiar...
Conheço de tanto estudar, ler, investigar.
Onde se aplica?
Na vida do outro, não na minha.
Onde se aplica?
Passou muito tempo, não me ative a prática deste conhecimento.
Ainda dá tempo?
Claro, todos somos feitos deste mesmo barro.
Fêmea ou macho, somos todos farinha do mesmo saco.
Deste enfadonho conhecimento, que acho longo, cansativo, repetitivo, lento.
Levo pouco, mas levo mesmo, levo o entendimento de que pouco me conheço.
E que na vida do outro, mesmo que feio, às vezes me reconheço.




14 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Flávio Yamamoto
O Quarto do Looping


E se der tudo errado?
Melhor que eu dê a cara à tapa para que a bordoada venha de uma só vez.
Que eu aprenda a cair da bicicleta antes de conhecer o equilibrado corpo sobre as duas rodas.
Que eu seja lançado: movimento centrífugo, looping...
Como um motoqueiro de circo em seu globo da morte.
Quantas quedas exercito antes de mostrar meu virtuosismo?
Para o público sou um louco irresponsável que arrisca a vida? Um suicida?
Mentira!
Sou um apaixonado que num treino solitário pratica o cálculo exato.
Giro e caio no meu esconderijo, ninguém assiste minhas derrotas, minhas quedas.
Caio e me levanto, giro e caio, me ergo, me arrebento, giro e caio e depois de muito ensaio, estou pronto pro espetáculo.
A bela donzela rói as unhas na plateia, ela não conhece meus arranhões, meus hematomas, minhas lesões.
Debaixo do meu macacão guardo as marcas da minha profissão.
Para que a linda moça suspire aliviada, ofereço a ela a ilusão do pouco esforço, do desafio às leis da física. Ela não precisa saber do cotovelo ralado, do pulso aberto, do joelho roxo, do tornozelo torcido.
No fundo ela sabe, mas finje não saber, do mesmo modo como finjo não doer.




15 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Ana Claudia Souza
O Quarto do Imaginário


Quem são essas pessoas?
Que lugar é esse?
Não conheço esse idioma, esses gestos, essa forma arquitetônica.
Quero ir embora. Fecharam a porta?
E agora? Onde coloquei a chave?
Deram-me uma cópia?
Não, a chave que me deram pertence a outra porta.
Estou no meio da história, já faço parte.
Esqueço as horas, não consigo ver as horas, os ponteiros sumiram do relógio.
Estou desconfortavelmente envolvida em uma trama desconhecida.
Aos poucos identifico alguns rostos, às vezes me comovo e mesmo sem enxergar, acredito.
Está quente aqui, estou com sede, estou suando.
Estou num deserto, estou gostando...
Quantas cores, quantas vozes, quantos risos, acho até que ouvi alguém chorando baixinho.
Por que choram?
Riem de mim? Choram por mim?
Estou sendo interrogada. Querem que eu confesse que estou encantada.
Melhor não dizer nada, ficarei calada para que não usem contra mim, as minhas palavras.




07 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Guilherme Pinca
O Quarto do Grito


Que gritaria!
Que barulho fazem os vivos ao falarem com seus pares.
Quando ofendem os transeuntes.
Quando gritam nas filas, nas delegacias, nos estádios, nos orgasmos, nas feiras livres e nas folias.
Que gritaria!
Que barulho fazem os vivos quando sentem raiva, desejo, euforia, medo.
Quanto barulho.
Quero botar ordem nesse galinheiro.
Quero organizar a balburdia, ordeno que silenciem e que ouçam calados minhas instruções.
Preciso trabalhar, me concentrar, ganhar dinheiro para me sustentar.
Preciso planejar, arquitetar um jeito bom de prosperar.
Preciso me familiarizar com o caos, reverenciar a confusão, aprender a conviver com a corrupção, com a traição, com a vergonhosa mentira da corporação.
Sou parte deste vozerio, deste coro escandaloso.
Vou entrar na festa, vou soltar a voz, vou gritar mais alto que o mais alto dos gritalhões.
Vou fazer tremer as estruturas.
Quando o galo cantar, meu exército se erguerá e lutará sem que eu precise me alterar.
Quando eu reconhecer meu grito, o meu silêncio, que tanto preciso, chegará.




08 de outubro
A Nova Carta | Missiva para Luís Deschamps
O Quarto das Paredes


Quem vem lá?
Um homem nu, um homem azul, um homem do sul.
Vem despido de vaidade, vem iluminado, vem do canto baixo do território mapeado.
Será recebido com vaias, ovos e tomates.
Ficará indefeso no centro da arena, disfarçando sua tristeza.
Depois que a cortina fechar, ele vai se limpar, vai chorar escondido, vai sentir vontade de matar, de bater, de se vingar.
Vai soltar uma gargalhada descontrolada.
Vai se assustar...
Vai sentir um ódio que ele nunca soube cultivar, vai se surpreender com a força do seu soco contra parede, a parede vai rachar, trincar, os tijolos vão se soltar, o velho teatro irá desmoronar.
Ele ficará soterrado, imobilizado, tentará pedir ajuda, ninguém o ouvirá, ele começará a rezar, a implorar para que alguém venha lhe salvar.
Os cães farejadores o encontrarão.
Ele sobreviverá. O velho teatro agora está em ruínas, mas o homem arruinado sobreviveu e contará a todos o que aprendeu sobre a vergonha e a revolta, sobre a ira e a falta.
A falta de ar...
Em praça pública ele será aplaudido. Quem vem lá?
O mesmo homem,  num teatro sem paredes.


Foto Viviane Fracari