quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A Carta Crua Do Fim Da Primeira Jornada | Com a faca na mão, posso, sem querer, cortar a língua.


Eu gosto de abacaxi, mas desde menina convivo com o fato chato de que o abacaxi é um fruto que me provoca aftas.
E aftas ardem e doem, rsrsrsrs... 
Passei minha vida desafiando o abacaxi, dizendo a ele: "Olha, eu vou te comer e desta vez não vai acontecer nada, meu organismo vai achar um jeito de vencer essa reação e eu vou finalmente comê-lo sem nenhum arrependimento”.
Comer ou não comer? Eis a questão.
Às vezes consigo abrir mão do meu desejo, às vezes não. Então pago o preço do desconforto, do incomodo, só pra poder provar o gosto. As aftas vêm e depois vão embora, eu ignoro a presença delas, desprezo a dor, não amorteço, não tomo remédios, não evito o tempo certo de virem e irem, não faço nada, não me privo de nada, convivo com elas e esfrego na cara delas minha duradoura satisfação em ter comido o fruto proibido. 
Valeu à pena. Não sei por que meu corpo rejeita, não sei por que, mas já não me interessa mais saber, eu vou apenas comer quando a vontade bater e o problema é meu, somente meu...
Não me compadeço com esse sofrimento, não ligo, experimento por algumas semanas a ferida em minha boca, experimento a ferida, ela me deixa mais calada, ela me deixa um pouco amuada, fico sentido o ardido da pasta de dente, do molho de macarrão, da mexerica e de outras presenças da minha rotina que ficam alteradas durante a permanência das aftas. O abacaxi fere a minha boca. Fecho a boca, penso que quando meu corpo quer muito comer abacaxi é porque tenho falado demais, comido demais, aberto demais a boca para vida e então me preparo para os resguardos que o abacaxi promove. Eu amo o abacaxi.
Quando alguém me convida a comer uma fatia de abacaxi, fico a pensar se não haveria um jeito de comê-lo sem precisar comer de verdade. Será que posso comer sem comer?  Posso sentir o gosto sem provar? Posso sonhar que estou comendo e em sonho ficar saciada? Posso sentir o cheiro e imaginar que estou comendo?
Não, não posso.
Acreditem ou não, sinto a boca rachar só de olhar para ele...
Aceito a reação do abacaxi no meu corpo. Aceito a mudança no meu corpo que o abacaxi me oferece.
Não sinto pena de mim. Não sinto arrependimento. Comer é uma escolha consciente.
Um silêncio em minha boca...
Deixo para os incomodados e os desconfortados, a tarefa que antecede a minha degustação.
Deixo para os fortes e os valentes, a afiada faca que corta e descasca o abacaxi.
Eu simplesmente como, já descascado, bem servido, cortado.
Como, mas não descasco, aliás, se precisar descascar, desisto imediatamente e me sirvo de outro fruto, substituo. Pois se para ficar calada eu ainda tiver que enfrentar a faca, deixo pra depois.
A vontade passa... Vou comer pêssegos, pêras, maçãs ou ameixas.
Ah... E ameixas também provocam reações em meu corpo que me oferecem muitas desintoxicações!!!
Aceito!