quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Salto Mortal


A mudança nunca termina. Ela se reorganiza. De malas feitas, disse adeus ao indomável instinto e ao incontrolável poder. Foi brincar de não ser, foi brincar de não fazer de conta, de simplesmente estar coerente com seu inumerável lugar na arquibancada do circo. Ela podia se sentar em qualquer cadeira, ela podia reivindicar o banco ocupado por outro expectador desinformado, podia exigir que antes já lhe tivessem reservado uma poltrona no camarote das loucas. Mas preferiu sentar no chão, bem perto do tablado, bem próxima aos palhaços, bem atenta ao truque dos mágicos, bem surpreendida pelo atirador de facas, pelos leões, os macacos, os elefantes, os engolidores de espadas e os voadores trapezistas, pelos malabaristas e também por sua querida amiga equilibrista. Sentou-se no chão, comeu pipoca, algodão doce, maça do amor e levou consigo uma foto num binóclinho, onde podia-se ver o instante exato em que ela morria de rir com o tombo do palhaço. Estava de mudança e tinha que seguir viagem, deixando pra trás a pequenina cidade, a última página escrita, a despedida. Mudou e se deparou com o mortal tempo das coisas. Chorou muito, chorou porque acabou, chorou porque enterrou, chorou porque a morte é forte e jamais se resiste a ela. Agora era chegada a hora de se entregar e confiar na  promessa de vida que havia em outras vilas, em outros quintais, sacadas, portais. O quê a deixava em paz era a certeza de que o circo corria o mundo, e que dalí a um segundo os alto-falantes anunciariam a chegada do Grande Circo Vivo na praça onde agora ela morava.