domingo, 31 de outubro de 2010

COMERAM-SE

                                                                                                                                                      
Foto Viviane Fracari

Um longo encontro, um encontro marcado no tempo ancestral.
O encontro demorou a acontecer, pois levou muito tempo para aliviar o peso, a dor e cicatrizar a ferida causada pela ventania que destelhou as casas.
Ficaram ambas desabrigadas,  nenhuma das duas foram avisadas de que passavam, cada uma no seu espaço, um terrível desequilíbrio que, desencadearia uma transformação no rumo traçado dos passos dados por elas, passos parecidos, sofridos, porém necessários para o avanço no aprendizado. 
Agora se encontraram, riram muito, choraram, se embebedaram, trocaram confissões, desabafos, mágoas, cansaços. Rasgaram a madrugada vasculhando os profundos e subterrâneos mistérios da alma.
Se espelharam na beleza do idêntico. Gêmeas, porém com energias avessas, invertidas para se encaixarem sob medida. E foi no dia da ventania que o espelho refletiu a ira, uma fúria frente a outra, o espelho quebrou, não podiam vibrar se não fosse em oposição, jamais atuar sob a mesma vibração.
Completas no abraço da tolerância com o arrogância, da quietude com a palavra rude, da paciência com a violência, da fome com a vontade de comer... uma à outra, pois como diria Clarice Lispector, saudade a gente só mata quando come a pessoa.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O Conflito Final | Humildimente: Eu e meu pai Oxalá somos UM

Diminuir, diminuir, diminuir, diminuir.
De pé sobre o palanque ou de joelhos aos pés do Hierofante?
De coroa na cabeça ou de chapéu na mão pedindo a benção?
O formoso príncipe em sua carruagem ou um súdito implorando piedade?
Um herói triunfante ou um humilde retirante?
Deus ou Eu?
Eu ou Deus?
Nós.
Fim do terceiro e último ato.
Sou movimento equilibrado, nas curvas reduzo, nas retas me aventuro.
Oxalá me aconselhou a aceitar com amor a liberdade de poder seguir em viagem, confiando na novidade, na possibiliade. "Enquanto sua filha faz o possível,  pai Oxalá improvisa o impossível".

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Conflito | Segundo Ato

Foi bom, ela alimentou a intuição com um pedaço de miolo de pão,
após ter realizado com precisão a difícil missão:
Dizer calmamente frases que, sob à luz do dia, nunca são ditas.
Disse com alguma economia, sendo seletiva e consciente do tom grave da devolutiva.
Cara a cara, a dura transparência frente a defesa autêntica;
se enfrentaram com beleza, pareciam estar de brincadeira, cócegas, pega-pega, cabra-cega.
Quem visse de longe, jamais imaginaria, que alí, houvesse uma briga.
Porém brigaram, até sangraram, mas ninguém chorou, foram valentes no quesito resistência.
O terceiro olho piscou pro escancarado sorriso iluminado.
Fim do segundo ato, dormem felizes os combatentes guerreiros.
Um grande, inteiro e o outro completo, em paz com o verso e o reverso.

sábado, 23 de outubro de 2010

O Conflito | Primeiro Ato

Trazer à tona, tornar visível o verdadeiro princípio. Coragem...
De um lado o saber inato, a intuição, a ação involuntária.
Do outro lado o saber desejado, o querer, a ação planejada.
Os dois lados se olham, se encaram.
O natural de escudo na mão.
O sábio com seu lampião.
Saber na escuridão é como saber e não ter o quê fazer.
O natural não quer mais se defender, deixa o clarão esclarecer.
Fim do conflito, o invisível emerge da sombra, o natural organiza os sentidos e constrói com a ajuda do sabido, do escolhido, um sonho possível, o atingível. O real sem os disfarces do inimigo. 

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O DESEJO DE TODOS

Segurou o leão à força e antes que ele a devorasse, silenciou nela o rugido feroz que ecoava dentro de sua alma contrariada. Silêncio...O leão cedeu ao abraço, morreu um duplo cansaço, o cansaço da fúria e o cansaço do interminável. Desejamos todos que daqui pra frente o embate seja diferente, que ela não precise nunca mais se desculpar e que ele possa rugir feliz noutro lugar.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Fartas Ideias

Trouxe muitas ideias na sacola, colocou-as sobre a mesa, aproveitou quase todas.
Preparou com as ideias uma refeição completa.
Então comeram, ficaram todos satisfeitos.
Lavou a louça, tirou a toalha da mesa e serviu os doces na varanda.
As ideias estavam frescas, comeram de joelhos.
E só foram embora depois do café.
Pois foi o tempo que precisaram para digerirem as ideias.
Eram frescas, saborosas, mas provocavam uma alegria louca, uma euforia boba...
Por isso é que de tempo em tempo, ela colhia ideias e preparava-as para serem servidas com fartura e festa nos aposentos da casa dela.
Temporada de ideias no pomar da Dna Adélia.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Em Agradecimento

Morta. Enterrada. Vestiram-na com a roupa que ela mais gostava.
Estava muito branca, Pintaram-lhe a cara. Dormiu exausta e levou junto ao seu sono o desenganado tempo vivido, mas que sabia ela, ter sido tudo aquilo parte de um compromisso. Viveu comprometida com a vontade que tinha de amar. E amou até o último suspiro, cumpriu seu compromisso. Até alí,  viveu o que tinha de ser vivido. Um amor que se acabou, que partiu para dar lugar a outro que estaria ainda por chegar.

Em outro tempo acordaria tão viva, tão corada e descansada. Começaria então uma nova jornada.

Não lembraria de nada...Não lembraria mais da dor que sentiu no peito no momento em que seu coração se viu obrigado a parar de bater, pois batia em vão, suas batidas já não tinham razão de assistir, de pulsarem naquela direção. Abriu mão do seu amor, sacrificou...Foi tanta dor. Por isso ela será poupada de reviver toda essa mágoa, não lembrará de nada. Acordará feliz e apaixonada.

Abrirá a janela, irá arrumar a cama, lavar o rosto, tomar café e agradecer, sem perceber, à morte, por ter lhe concedido ainda em vida a possibilidade de nascer de novo e ainda por cima, mais bonita.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Amor da Angélica Temperança pelo Enforcado Cabeça de Nabo

Ela suspirava sempre que ouvia uma canção. A música vinha de longe, parecia o som de um velho violoncelo. Seu coração ficava apertado, ela imaginava que mãos eram aquelas que comprimiam as cordas, dedos e cordas e um arco a arrancar espasmos tensos de tal instrumento. Suspirava...e na sua tarefa diária de temperar o intenso e por vezes o desanimado tempo, para chegar ao equilíbrio do lago sereno, distraída, abandonou os jarros e seguiu a vibração até chegar ao local de onde vinha o som. Hipnotizada adentrou a casa e viu ao espiar pela porta da sala um homem sentado, tinha uma cabeça de nabo, um pé amarrado à uma corda e cresciam ao seu lado, uma à esquerda e outra à direita, duas árvores de cerejeiras, estavam recém podadas e de seus galhos ainda escorriam sangue e seiva, lágrimas de cerejeiras. Ele não notou sua presença, continuou tocando, tocando. À certa altura cochilaram ambos, ele abraçado ao chello e ela encostada na parede gelada do corredor que dava para sala. Acordou assustada, pois sentiu sua roupa molhada, notou que a casa estava inundada, a água já chegara aos tornozelos. Ergueu o vestido comprido e já ia saindo quando lembrou-se da música, resolveu espiar novamente a sala e lá estava o violoncelo envergado a boiar na água e ele dependurado de cabeça para baixo e com as mãos atadas. Parecia estar sorrindo e dançando. Ela quis se aproximar, pensou em ajudar, pois se água continuasse a subir ele logo se afogaria, mergulharia sua cabeça de nabo na água fria que rápida subia inflando o vestido dela, resfriando suas pernas. A mobília toda à flutuar. Ela agarrou-se a cerejeira, subiu nos galhos podados como se subisse uma escada, sentiu nos pés e nas mãos a grudenta seiva. Estava ela trepada na cerejeira que estava à esquerda do dependurado, tentou alcançar a corda para desatar o nó do pé, apenas um pé estava amarrado, o outro livre lembrava o movimento de um dançarino de polka. Quando finalmente ela conseguiu chegar até a corda ele gritou " Por favor não solta!". Ela se assustou, desequilibrou e caiu de costas na água que já banhava os cabelos do tal prisioneiro. Por alguns instantes ela ficou a boiar agarrada ao violoncelo. Parecia uma náufraga sustentada por uma tora de madeira sendo levada pela correnteza em direção a queda livre da cachoeira. Lembrou-se dos jarros e do destempero de tê-los abandonado, eles derramaram um oceano de um mar acumulado, salgado. O destemperado mar que ela deixou para trás ao sair em busca da música. Com as asas molhadas, pesadas, encharcadas, tentou voar para botar no lugar o fluxo inesgotável das águas, pois a essa altura já haviam consumido até a cintura o submerso Enforcado, agora afundado com sua cabeça de nabo a criar raiz no imenso oceano. Quando só se podia ver na superfície, apenas o pé esquerdo ainda preso à viga de madeira fixada sobre as cerejeiras, ela recuperou seus jarros e sobrevoou em desespero a casa inundada, adentrou a sala num vão estreito entre o teto e a água, desatou o nó e libertou o dançarino para que ele dançasse com os golfinhos, os cardumes e as sereias. Em algum lugar no fundo do mar, ele esculpiu os corais, esticou as algas e fez surgir um violoncelo. Vive feliz a tocar, a reger, a bailar, transformou o mar em música, são poucos capazes de escutar. Ela escuta. Quando cansada de uma longa caminhada, sempre precisa de um poço pra beber água e enquanto ergue o balde de ferro com a manivela, ela pode ouvir a música  no fundo do poço, no balde, na caneca, dentro de sua boca, na saliva que umidece sua garganta. Ela engole a música, mata a sede, segue em frente, mais contente. Sabe que o amor que tem por ele é nutriente para sua inspiração, para trilhar seu livre caminho, vivido passo a passo e com muita paixão.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Exclamou a Princesinha

E se eu acreditar na insanidade infantil que brinca de amarelinha, um pé, dois pés, pisa o céu, salta o inferno dentro da minha cabeça de menina.
A menina maluquinha esta sempre fazendo arte na cozinha, no quintal, na rua, na casa da vizinha.


Gosto da loucura infantil, a loucura do palhaço que apronta e desapronta, mas nunca leva bronca, pois no fim das contas, sorte de quem viu, ouviu e riu com sua loucura fanfarrônica, bufônica de uma mestre de cerimônias sem nenhuma cerimônia.
A menina que solta pum, senta de perna aberta, tira catota do nariz, gruda debaixo da mesa e depois arrota feito uma princesa.