terça-feira, 17 de maio de 2011

A Carta Crua em Noite de Lua Cheia | A Colheita

Quanto tempo ainda eu vou ter de esperar?
Acabou a espera, esqueça daquilo que estava esperando. Não espere.
Desespere!!!
Quanto tempo ainda vou me desesperar?
Cruze as pernas, assobie uma canção, encoste na parede, leia um livro, se distraia.
Traia!!!
Quanto tempo ainda vou me trair?
Ouça os lamentos, mas fique apenas com as mentiras, as anedotas, acredite que há uma revolta.
Volta???
Por quanto tempo ainda vou me revoltar?
Volte pra refazer, pra renovar, pra reconstruir, volte pra poder voltar, despedir.
Pedir?!
Quanto ainda devo pedir?
Esvazie os jarros, desperdice os excessos, perdoe os acréscimos, doe sem punição, não peça, faça a devolução.
Entendeu a lição?
Não fique somente com a sua versão, ouça as vozes, ouça as dores nas palavras inteiras, não ouça apenas as  meias, ouça o barulho da festa na vizinhança, não se aborreça, entre na dança, não resista ficando somente com a noite mal dormida. Inverta, subverta, vire do avesso sua sentença, desenforca sua cabeça, reviva, seja você a juíza, descrucifixa. Você está absolvida, agradeça todos os dias, pois com alguma atenção, você consegue separar o sim do não, o seu do meu, o visível do invisível e ficar com o que te foi escolhido.
Você foi escolhida.
Colhida!

domingo, 8 de maio de 2011

Carta Crua para Paula Baccaro | Sobre fios, avós, rios e nós.


Pode contar pro seu filho que lá no céu as estrelas nos assistem da mesma forma que daqui da terra nós assistimos ao brilho delas. Quando uma estrelinha quer vir morar na terra, ela escolhe um papai e uma mamãe e através de um fio luminoso elas descem, normalmente descem em noites enluaradas, pois ama-se melhor ao luar. Elas viram sementinhas dentro das barrigas das mães escolhidas, nascem, crescem, amadurecem, envelhecem e quando se despedem da vida na terra, voltam pro céu e aguardam o dia de poderem refazer a descida.
Somos estrelas a passeio neste planeta.
Pode contar pro seu filho que a lua está sorrindo porque está crescendo. Que a lua é mais linda quanto mais escura for a noite. Que a noite é feita pra dormir e que a lua é a luz dos sonhos, porque é de noite que silenciamos e é no silêncio que ouvimos os sons dos segredos, dos mistérios, dos lampejos. A lua é feito uma avó que mora no céu e conta histórias para os netos dormirem, a lua quer que fiquemos íntimos de nós mesmos, mesmo quando dividimos nossa intimidade em meio aos festejos, aos pares, nos rituais de acasalamento.
Somos netos da lua e lhe devemos respeito.
Pode contar pro seu filho que as flores murcham, que as folhas caem, que alguns rios secam, que sapos comem insetos, que cobras comem sapos e que homens matam cobras quando se sentem ameaçados, que as coisas findam, acabam, terminam. Que ficamos tristes às vezes, mas que nem sempre o fim é percebido, basta que ele esteja sutilmente inserido dentro do ciclo. Morrer é a natureza de viver e quando uma pérola, um grão, um pólen ou uma gota se encerram, morrem as partes para que se movimente um universo.
Somos plateia e palco da morte, isso é certo.
Pode contar pro seu filho que o único caminho é o que nos leva pra dentro de nós mesmos, é um labirinto, um trajeto repleto de riscos, que exige de nós sacrifícios. De que tipo? Poderá perguntar seu filho, pois sacrifícios podem ser mal compreendidos. Explique a ele que precisamos nos desapegar do que não nos pertence, das mentiras que inventamos, dos modelos que copiamos, dos equívocos que criamos. Diga que será preciso um afastamento, um mergulho em si mesmo, um encontro do qual não se pode ter medo.
Somos feitos para viver em pleno funcionamento, quando o que somos está de acordo com o que queremos.
Pode contar pro seu filho que isso tudo hoje, pra você, fez muito sentido.

domingo, 1 de maio de 2011

O nascimento da Carta Crua

A cobra morde o rabo, a missiva conclusiva.
O Miolo da Missiva abre hoje o Livro II.
Estou em São Paulo, estou em 01 de maio de 2011, tenho 40 anos, dois filhos.
Moro com a minha mãe. Sou atriz. Para pagar minhas contas dou aulas de teatro, ministro cursos em empresas, raramente, ao longo desses 20 anos de carreira, ganhei dinheiro atuando, mas declaro publicamente que o que ganhei com o teatro é de fato meu grande tesouro, amo essa arte com a qual estou envolvida, amo escrever para teatro, atuar, dirigir, conversar e experimentar teatro. Sou uma teatreira praticante.
Os textos escritos para o Miolo da Missiva viraram uma peça teatral que virá à público em breve.
Hoje inicio o Livro II.
O Miolo da Missiva- Livro II: "A Carta Crua".
Nunca me imaginei autora, cometo muitos erros quando escrevo, tenho dificuldades com as pontuações, às vezes escrevo errado, mas gosto muito de escrever, escrever me conta, me organiza, me revela, me vira do avesso.
Este diário que mantenho escancarado é meu paciente exercício de observação do que quero chamar a partir de agora de A Carta Crua. A Carta Crua é sem tempero, tem cheiro de sangue, tem gosto de terra, é original, autêntica, nua e crua, fica exposta ao sol pra conservar, fica na geladeira pra não estragar, fica em tonéis, engarrafada, crua, sem mistura, é anterior a minha vontade, é superior à minha vaidade, é rigorosa com a verdade, é cruel com minha  necessidade de aprovação, com a minha posição de vítima, com minha fraqueza, com minha exagerada transparência que tento evitar, disfarçar, mascarar, mas que vem à tona impiedosa e me rasga ao meio e me expõe sem pedir licença e esfrega na minha cara sua autoritária sentença: A Carta Crua é justa e não tem nada haver com o destino, nada está pré estabelecido. Eu sou o que eu quero pra mim.
Eu quis ficar sozinha, eu quis ser atriz, eu quis ter filhos, eu quis voltar pra casa de minha mãe, eu quis ter dois ex maridos, eu quis ser boba quando fui e quando fui vil também quis exercer minha vilania. Continuo a querer, segundo à segundo. Quero ter sorte, quero me dar bem, quero fazer pouco esforço, quero acertar no jogo, quero vencer, ganhar, ter, me satisfazer, rir, me divertir, ter prazer e oferecer ao mundo todo o melhor de tudo que eu sei fazer. Se eu quero, eu posso?
Pelos os critérios de A Carta Crua, eu posso sempre, mas ninguém pode por mim, eu faço a minha história, escolho minhas cenas, meus colegas de cena, meus ondes e os quandos de cada ato, de cada quadro.
A Carta Crua me responsabiliza, me liberta, coloca nas minhas mãos os capítulos do novo livro.
Nunca fui fraca nem pequena. Nunca fui infeliz nem digna de pena. Sou uma mulher com fome, quero comer a vida, raspar o prato, sentir o gosto prolongado do pão que eu mesma amassei. O meu pão da vida.
Sou experiente, há um saber em mim, claro que há. Vou resumir: sei criar, sei mostrar minha criação, sei procriar, sei desvendar o que está por trás daquilo que crio, a minha criação no momento em que estou esvaziada de emoções baratas, de fórmulas equivocadas, de ingênuas influências e de quando estou em conformidade com o Tempo. Estou desvendando hoje A Carta Crua. Cheguei até aqui.