domingo, 20 de março de 2011

O Quarto do AUTORETRATO

Autorizadas a subirem a primeira escada, serviram-se de água e pão, daquele pão que o diabo sovou, assou e botou sobre a mesa, para que todas comessem sem fazer careta.
Bem, subiram até o quinto quarto e foram recepcionadas pelos cincos sentidos, os sentinelas do Quarto do Autoretrato, os cinco enfileirados lhes deram as boas vindas.
Perguntou Dna Línguiça:
-Quem conhece o gosto do próprio rosto? Quem já lambeu a própria testa? Quem já beijou a própria face? Quem? Quem?
Dna Orelha de Porco perguntou debochada:
-Quando vocês conversam com vocês mesmas, quem abaixa a orelha, a burra da esquerda ou a da direita?
Riram muito os outros sentinelas com o espirituosismo dela.
Dna Corneta sempre aérea fez sua pergunta dispersa:
-Qual a cor do seu suor? Qual o tamanho do seu peido? Qual a temperatura do seu chulé? Hem, suas Mané?
Dna Olho de Sogra perguntou sem demora:
-Espelho, espelho meu, existe alguém nesse mundo mais sem noção do que eu? Tem noção do espaço que ocupa sua bunda? Tem noção da dimensão de um palmo além do seu nariz? Hem, infeliz?
Então, chegou a vez do Sr Película fazer sua pergunta ridícula:
-Quer uma massagem nas costas? Quer? Não dou. Quem não massageia as próprias costas não merece entrar, quem quer a chave do Quarto do Autoretrato vai ter que se coçar! Rá, rá, rá...
Entraram confusas com tantas perguntas. Entraram finalmente no quarto número cinco e tiveram que rasgar milhões de vezes os esboços que faziam, um atrás do outro, dos desenhos do próprio corpo. Eram constantemente reprovados pelos sentinelas, às vezes pediam descrições por escrito, às vezes pediam composições musicais, versos, esculturas em argila, pediam uma coreografia, uma pintura expressionista, mas nada do que propunham retratava o que elas viam através do espelho dependurado no meio do quarto, cada vez que se olhavam, o quê estava lá, já havia mudado, se alterado.
Desesperadamente começaram a varrer o chão e juntar numa única pilha, todas as propostas exibidas, tacaram fogo, incendiaram todas as possibilidades de retratos, queimaram as versões experimentadas e reprovadas, livraram-se das velhas imagens, principalmente das vaidades e das autopiedades, livraram-se.
Os sentinelas aplaudiram a morte de tudo que pudia corromper a beleza de ser, puramente.
Então elas se abraçaram, não umas às outras, mas a si mesmas, beijaram-se, amaram-se com todos os sentidos. O espelho no centro do Quarto do Autoretrato sorriu e explodiu em mil pedaços, fizeram elas um mosáico com os estilhaços, colaram, caco por caco e nunca mais olharam pro espelho remendado, era desnecessário. Agora podiam sair do quarto, estavam sensíveis, ninguém podia se aproximar delas, estavam tão transparentes que podia-se ver seus corações, seus pulmões, o sangue a correr por suas veias, estavam tão autênticas que precisariam de resguardo por sete dias antes de seguirem pela escadaria. 



Constatação | Missiva pra Camila e ViviS

Lá estão elas...
uma recolhe os destroços, lança os ossos aos cães, enquanto a outra recicla a velharia e costura fuxicos para botar no vestido.
De noiva?
Não sei,
respondeu a outra

Uma vasculha no escuro o quê sobrou dos entulhos.
Uma outra caminha de lá pra cá, feito barata tonta, num mal me quer bem me quer infinito, despetalando as margaridas.

Do buquê?

Não, do seu canteiro mesmo, pode ser?

Tolerante e silenciosa, uma delas despeja em uma panela, água para fazer um café. Pacientemente aguarda o tempo da fervura, aguarda o tempo de coar, ver o pó molhar para depois escaldar o bule, servir, saborear...ela está concentrada em seus procedimentos, organizando as horas, formatando a medida exata de seus desejos.
A outra destrambelhada, derruba e quebra as xícaras de porcelana, escorrega  na poça de café, cai e torce o pé. Chora, grita, xinga. A outra  lhe bota no colo, pedra de gelo, atadura, arnica e cânfora. Agora ela descansa.

Quer dormir aqui? Quer deitar na minha cama?

Não, chama um táxi, quero ir embora.

Que sejam feitas as vontades.
Uma pulando que nem saci, pega o táxi, volta pra casa resistindo a dor, superando os obstáculos, provando seu valor, ficando só com seus sofrimentos. Equilibrando o peso de seus desalentos.
A outra recolhe os cacos, limpa o chão, guarda a panela, fecha o fogão. Deita em sua cama, faz uma prece, agradece. A lua desce, a noite segue e na soturna madrugada a vida se prepara para surpreendê-las na alvorada.
Bons sonhos...

sábado, 19 de março de 2011

As Quatro Personagens| Missiva de Abertura



Com algumas poucas conexões, elas sentaram-se a mesa para discutirem o futuro baseado em um passado sem antecedentes anotações. Visualizam o desejo de desmaterializarem a concretude da vida, transformando-a em arte.
Fernanda Nocam
Adriana Azenha
Elas próprias são as personagens, elas sabem, elas não se importam e até gostam. Será à partir do aglomerado de fatos e do amontoado de sensações que, elas abrirão espaços para suas livres abordagens sobre o mundo do humano, do instintual, da matéria bruta e impenetrável do inconsciente, das imagens vistas pelos cegos, das palavras ditas pelos mudos, dos sons ouvidos pelos surdos, de tudo que não sabemos nomear.
Silvia Fuller e Juliana Passos
Elas querem vasculhar esses labirintos, elas querem adentrar os quartos. À começar pelos debaixo, os porões, os subterrâneos, os alçapões...
Elas entram em cena na seguinte ordem:
Primeira personagem: a arquivista, a que tem acesso aos mapas do labirinto, aos números dos quartos,que conhece os segredos dos cófres, as chaves e as fechaduras.
Segunda personagem: a condutora, a que sabe navegar, cavalgar, voar, ela domina as rotas, conhece atalhos e percursos, as fases lunares, as bússolas.
Terceira personagem: a propagandista, a que bate à porta, oferece o produto, investiga o consumo, divulga o benefícios, sabe sobre virtudes e vícios.
Quarta personagem: a jardineira, conhece a terra, as sementes, o tempo de plantio e as colheitas, conhece as pragas e os estercos e também os venenos. 
Cada qual com seu conhecimento. 
Elas trabalharão juntas com o raro propósito de serem ouvintes do silêncio inspirador que faz barulho no oco espaço do conteúdo.


(Fotos: Viviane Fracari).
                                                                                                                                                                           

sábado, 12 de março de 2011

Cala Boca

Agora Ela vai se pronunciar.

Sabotagem!

Não preciso pronunciar meu nome, poderia usar qualquer um, de qualquer país, de qualquer ilha, canto qualquer do mundo. Um nome qualquer de qualquer mulher pronta para dar um belo de um pontapé na porta e arrombar a privacidade, acabar de uma vez por todas com os segredos, com os silêncios, com os bons modos e com as conversas ao pé do ouvido das quais eu nunca participo.

Estou irritada, mas vou conter minha ira para relatar os detalhes da missiva.

Ousadia e competência. Fiz tudo com total domínio do indomável.
Não sou domesticável, não sou contida, não faço economias, não corto as palavras ao meio, gosto de dizê-las inteiras, de pronunciá-las em alto e claro tom.

Eu disse entorpecida pelo “Martino de Chile” palavras e mais palavras, misturadas com risadas e gargalhadas e alguns poucos palavrões, disse sinceramente coisas boas de serem ouvidas, coisas engraçadas, coisas poéticas, românticas e proféticas, disse asneiras, besteiras, falei pelos cotovelos e sabia que eu só me calaria frente a um beijo.

Um verdadeiro “cala a boca” que demorou a chegar e que poderia ter se prolongado muito mais do que o imaginado, muito mais do que o de fato, executado.

E o resultado?

Deixamos pra depois? Há o depois?

Então é assim... eu supero minha fraqueza, arrisco minha cabeça, ofereço uma surpresa, uma verdadeira lista de delicadezas, com pequeninos detalhes, um passeio, uma hora do recreio, com merenda, brincadeira, diga um verso bem bonito, diga adeus a vá embora: “sou pequenina, da perna grossa, saia curta, papai não gosta”.

Não gosta? Não gosta mesmo? Pena, que pena, que peninha eu tenho dessa preguiça que imobiliza e paralisa a ação. O quê que nos impede de seguirmos na mesma direção?

Nada!!! Eu chego e você me recebe, me entrega o cetro, eu me sento no trono do nosso castelo, os subalternos nos servem, os músicos tocam as canções que encomendamos. Você até dança, come gorgonzola com castanhas e no dia seguinte lembro-me de que brindamos. À que brindamos?

Ao fim? Ao que poderia ser? Ao triste desencontro?

Vou entrar nesse quarto e vou quebrar tudo. Vou botar pra quebrar!

Quero continuar jogando, quero a revanche, quero fazer minhas apostas, eu vou virar a banca, vou botar o cassino à baixo. Eu dou as cartas. Entendeu a piada?

Vou repetir: “eu dou as cartas”.

domingo, 6 de março de 2011

Ainda sob revisão, mas já à disposição: "Em expansão! Subindo..."


Ao escolher o par, escolha o similar.
O quase irmão, um primo, um incesto sentido.

Destrua o outro que permanece enfraquecido, doente, corroído.
Destrua com vontade!
Jogue fora o par defeituoso, não só a parte estragada, mas também a parte contaminada.
É, você mesma, que é também parte da parte infectada. Jogue fora agora!
Olhe com atenção, veja se não sobrou nada, veja se a queda livre resultou em morte súbita, se as cabeças derramam sangue na sarjeta, se os pescoços estão quebrados e os maxilares deslocados, se as fraturas estão expostas e se há atestado de óbito documentando o fim dessa bosta.
Confira, averigue e cheque, certifique-se.

Agora se esforce ao máximo para manter viva na mente a memória do semelhante semblante que convidou-a ao amor e que sem titubear vc aceitou, lembre-se de que vc se programou, planejou por meses esse encontro ardente, esse sexo com desinteresse, esse prazer puramente virginal de ser deflorada pelo seu igual.

Tão consciente de sua função, seu par ancestral, avisado com antecedência foi ao seu encontro com urgência, pois precisava, ele também, atender a incumbência.

Foi ensolarado como seu astro regente, perfumado, lindo como um pavão pretendente a cortejar sua fêmea, foi e deu de cara com sua irmã dourada, vestida de vermelho no meio da calçada, olhos claros, os quatro, cabelos claros, os dois, postura ereta, ambos, vaidosos albinos com pequenos vícios, ela com um copo de cachaça na mão para esquentar seu coração, ele com pedras de gelo à boiar no uísque, à refrescar seu guloso apetite, viram-se, ouviram-se, tocaram-se, fizeram suas partes, amaram-se com coragem, despediram-se com classe. Como foram lindos e delicados e gentis e iguais no afeto, no gesto e no fazer, sem ter que perguntar nada, tudo o quê é certo. E fizeram e fizeram e fizeram...

A função do similar, neste específico evento, é de dar à ela a justa medida de sua beleza invertida, de dar à ela confiança e segurança para seguir em frente sua dança.

Ela não precisa de aprovação, de repetição nem que lhe dêem os loros da consagração, não, ela não precisa de nenhum tipo de confirmação acerca de sua excelente performance e de sua satisfatória agilidade para subir no trapézio, dependurar-se, abrir-se, mostrar-se, exibir-se fantasticamente em equilíbrio com seu querido masculino.

Atendemos ao primeiro pedido.

A estrela segue à guiar seu caminho, nossa protagonista agora precisa de proteção, de força para não cair nas garras da coitada, da vítima desolada que, vez ou outra, surge pra ameaçar sua convicção.

Convicta. Ela deve manter-se convicta!